Hoje não há sol em Bruxelas, as ruas estão desertas, o país está em alerta máximo por ameaça iminente de um ataque terrorista e a única coisa que mexe são as gotas da chuva que me caem na ponta do nariz. Há militares e polícias imóveis a cada esquina, tanques nas avenidas sem gente, sem luzes e sem comércio. O céu cinzento condiz com as caras dos poucos que por aqui passam, tal como eu, a tentar manter a normalidade.
Não há metro e os autocarros estão apinhados, tipo lata de sardinhas, e de vidros embaciados. Não há supermercados, nem lojas, nem museus, nem turistas, nem confusão, nem os bêbados das seis da tarde. Há grades e portas fechadas a sete chaves. Vejo cinzento e verde seco, caras sisudas e sirenes barulhentas que rompem o silêncio do medo. Será este o ambiente da guerra? Que história tão triste.
Antes de tudo isto, estive várias vezes a trabalhar em Molenbeek, o bairro esquecido da cidade de Bruxelas e que, por isso mesmo, agora é famoso. Aquilo a que os jornais chamam “fábrica de jihadistas” é uma zona onde muitos imigrantes árabes encontraram uma comunidade com algum sabor a casa. Sem oportunidades, sem igualdade, com pobreza e desemprego, num apartheid de consentimento mútuo. Tanto os recém-chegados encontraram familiaridade num bairro de maioria árabe e, por isso, decidiram fixar-se ali, como o Estado belga os terá deixado excluídos, discriminados, no seu cantinho da cidade.
Molenbeek é uma personificação a céu aberto, para quem quiser visitar, do falhanço europeu na integração efetiva das suas comunidades de imigrantes. Com 40% de população jovem, pelas suas ruas cheias de cores e cheiros exóticos passeiam rapazes sem trabalho, sem escola, sem dinheiro e sem perspetivas. Sem futuro. Nasceram cá, mas na casa errada. Sentem a injustiça e a revolta num quotidiano vazio. Não têm nada que fazer e, o que mais assusta: não têm nada a perder.
É neste bairro que se situa o depósito de doações do campo de refugiados, é para lá que toda a roupa e comida são encaminhadas, triadas e organizadas, para depois serem distribuídas no Hall Maximilian. Precisam muito de ajuda e, quando tinha menos trabalho, passava por lá para dar uma mãozinha ao meu colega Gille, o coordenador da incansável equipa que se ocupa daquele caótico armazém. Pude constatar que era um bairro pobre, mas nunca ninguém me deu razões para ter medo. É um bairro de maioria árabe, como tantas outras ruas e praças em Bruxelas. Como aquela em que eu vivo.
Na semana passada, estava no elétrico a escrevinhar qualquer coisa no meu caderno, quando entrou um homem de barba comprida e se sentou à minha frente, a falar ao telefone. Como comecei a aprender árabe com os refugiados, pus-me discretamente a ouvir, para ver se apanhava alguma coisa. O homem terminou o telefonema e começou a falar comigo. Perguntou-me o que é que eu escrevia, se era um diário e se eu descrevia a minha viagem até casa. Apressou-se a dizer que estava a brincar, mas respondi-lhe que estava a escrever um artigo. Admirado, respondeu: “Muito bem, pode então escrever aí que acabou de conhecer um marroquino de Molenbeek, está a ver onde é? Um bairro muito falado, nos últimos dias, infelizmente pelos piores motivos. Também sou muçulmano e venho de lá, mas não tenha medo de mim”.
Ri-me, à falta de uma resposta melhor, “claro que não”, disse-lhe. “Devo dizer-lhe, menina, que, por vir de lá, sei muito bem qual é o problema. Escreva se quiser. Os jovens são filhos de imigrantes, muitos deles marroquinos como eu, mas nasceram cá. Se forem para Marrocos, são estrangeiros. Se ficarem na Bélgica, estrangeiros são. Não fazem parte de nenhuma pátria, não sentem pertença a lado nenhum. Não têm valores a que se agarrar. Não têm educação, abandonam as escolas cedo e não há ninguém que os demova. Sentem-se discriminados, injustiçados. Não têm hipóteses de trabalho, nem dinheiro, nem casa própria, carro, namorada… Nada. Eu estou lá, eu conheço muitos jovens assim e tenho medo por eles. Estão perdidos, revoltados e são presas fáceis para os que querem espalhar o mal. Basta um discurso bonito e apelativo, uma família que lhes prometa acolhimento e inclusão e estão prontos para dar a vida, depois de lhes oferecerem uma”, conta-me. “É triste vê-los partir por uma causa que nada tem a ver com o Islão”. É triste, mais uma vez concluo, não terem nada a perder.
Desisti de escrever sobre o assunto que tinha em mãos e segui o conselho daquele senhor. Agradeci-lhe por me ter abordado e pedi-lhe que não deixasse de contar a sua história. “As pessoas precisam de saber isso, precisamos todos de refletir e, só assim, alterar o rumo das coisas”, disse-lhe, antes de sair para o frio da cidade.
Depois daquele encontro, percebi que nada é mais pertinente na questão em que me debruço, a crise de refugiados, do que falar em integração. A Europa falhou e o “Estado Islâmico” ganha terreno, entre aqueles que nós não conseguimos acolher. Temos cada vez mais medo e estamos, infelizmente, cada vez mais próximos do drama de que os refugiados fogem. O melhor seria cortar o mal pela raíz e promover a união pela força, opondo-nos ao terror que se aproveita das brechas da nossa sociedade.
Hoje o ambiente é de guerra, de vazio e medo. Há uma metralhadora a cada virar de esquina, a tensão sente-se no ar e nas praças desertas, nos olhares dos poucos proprietários corajosos que resolveram abrir os seus cafés e agora fixam o infinito assustador, através das montras. “Eles conseguiram”, não me sai da cabeça. Temos medo, temos terror, temos frio. A cidade parou. Molenbeek está no mesmo sítio, tal como a majestosa Grand Place, agora cercada por militares. As ruas e praças estão lá também, tristes e vazias. O Primeiro-Ministro veio pedir às pessoas que ficassem em casa, mas não tenho televisão e andei por aí, por isso só soube ao fim do dia.
O campo de refugiados do Hall Maximilian fechou, os serviços mínimos estão assegurados, há uma equipa que distribui sanduíches, roupas e cobertores do lado de fora. Quando lá cheguei, disseram-me para voltar para casa e esperar por atualizações, que estavam a tratar de tudo com um número reduzido de voluntários. Vamos lá ver como isto evolui.
Uma nova insegurança surgiu no meu pensamento: a de a situação se inverter. Já vários campos de refugiados foram alvos de atentados na Europa, às mãos de um extremismo xenófobo que usa o mesmo veículo para crescer. O medo. Mas não nos deixemos consumir por ele, só temos de nos proteger. Por agora fico em casa, a ver o que acontece.
Devemos estar preparados para o perigo de um crescimento da desconfiança e da xenofobia, sem perder motivação e energia. Se a inserção social dos refugiados já não parecia fácil no contexto da semana passada, neste momento, a dificuldade cresce a cada minuto de silêncio das ruas de Bruxelas.
Aproveitemos esta triste oportunidade para ponderar as políticas de integração. Os motivos de muitos dos jovens europeus que se juntam ao “Estado Islâmico” vão muito para além da religião, tal como me disse o marroquino do elétrico.
É então hoje, mais do que nunca, urgente pensar no que se vai fazer à gente que chega, aqui refugiada, à espera de uma vida. Agora evitamos a fome e protegemo-los do frio, amanhã vai ser preciso deixá-los juntar-se a nós e abrir portas para que encontrem o seu lugar no mundo. Manter a esperança de que Europa não é só sinónimo de paz frágil, mas também de pertença e de inclusão. De união.
Orgulhamo-nos das nossas liberdades e direitos, mas não queremos partilhá-las com quem não as tem. Acredito que não devemos subestimar o choque cultural, mas também que este, quando ultrapassado, nos tornará a todos mais ricos, mais sábios e cosmopolitas. Mais capazes e mais fortes, com mais vontade de preservar aquilo que é nosso. A nossa paz e harmonia é feita de pessoas que se sentem a fazer parte, de pessoas com casa, trabalho, vida e história. Pessoas resolvidas e incluídas. Que têm algo a perder.