Hoje está sol em Bruxelas. Fiz o caminho todo a alta velocidade na minha bicicleta sem travões, a celebrar o bom tempo. Cruzei-me com militares fardados e de arma ao ombro, olhares tensos e muito mais polícia do que era costume. A cidade está num grande alvoroço. Dois dos terroristas responsáveis pelos atentados em Paris foram daqui, do bairro de Molenbeek, e têm sido detidas várias pessoas, suspeitas de ligações ao “Estado Islâmico”.
À chegada ao centro, por entre o som dos pedais, comecei a ouvir uma música suave que me embalou os últimos metros até ao poste onde estaciono a bicicleta. O Hussein está de volta. Já tinha saudades da sua música, que nos embala e nos aquece, do seu sorriso e sentido de humor, da sua conversa tão agradável.
Quando começou a guerra de 2003, no Iraque, o Hussein tinha 15 anos. Falava mal inglês, mas queria muito aprender mais, pelo que começou a passar tempo com os soldados americanos. Fazia muitas perguntas, queria saber quem eram, de onde vinham, se no país deles era melhor que ali. Acabou por ficar a trabalhar como intérprete. Acredita que possa ter sido esse contacto com o mundo ocidental que o levou a sentir-se diferente e a desejar fugir da sua terra. Só que nunca teve condições para tanto.
Foi sempre encontrando trabalho em empresas americanas, como intérprete e comercial. Punham-no em contacto com gente importante e também os patrões se afeiçoavam àquele miúdo bonito, de olhos verdes e pele morena, barba cerrada e um claro talento para a comunicação.
Aos 19 anos, partiu para o Líbano para trabalhar como voluntário. Dava aulas de Inglês a crianças órfãs e lá aprendeu a tocar piano. De regresso à sua cidade, soube de um senhor que tocava alaúde, comprou um, pediu-lhe que o ensinasse e todas as noites lhe bateu à porta, até conseguir praticar sozinho. No dia em que não apareceu, o velho músico foi à sua procura. “Senti a tua falta”, disse-lhe, “de certeza que já não precisas de mim?”.
A certa altura na história de Hussein, os seus pais morrem, não me contou quando, exatamente, nem como, mas como a mãe trabalhava para o governo, os seus estudos continuaram a ser financiados pelo Estado. Entrou para o conservatório de Bagdade, onde estudou três anos, até as burocracias começarem a complicar-se e acabarem por lhe cortar os apoios. Formou uma banda com um percussionista, uma flauta, um violino e um qanun iraniano. Fizeram sucesso, foram convidados para o “Ted Show” de Bagdade, mas a situação de vida estava a tornar-se cada vez mais insuportável. Precisava de fugir da violência.
Hussein revelou-me que as coisas pioraram muito desde o fim da guerra. “Agora já não são tropas fardadas, são pessoas como eu, milícias armadas que atormentam as ruas das cidades”, diz-me. “Podiam matar-me por razão nenhuma, pela minha maneira de caminhar, de ser, de vestir, pelas minhas crenças… O terror era constante.”
O meu amigo resolveu fugir este ano, entrou em contacto com quem já o tinha feito, ouviu histórias, ganhou coragem, não tinha a nada a perder. Só lhe custava separar-se dos colegas da banda, mas acredita que eles um dia terão condições para partir também.
Um mês antes de abandonar o Iraque, juntara-se à Solo Baghdad Band uma voz feminina que os levou a dar um grande salto. Mostrou-me um vídeo de um concerto e chamou-me à atenção para a euforia do público, no momento em que a cantora sobe ao palco. “Deu-nos uma visibilidade incrível”, conta-me, “logo agora que eu tinha de partir”.
E por que fugiu? “Eu não aguentava mais ficar ali, tinha de vir tentar a minha sorte noutro lado”. Partiu sozinho e passou a viagem toda a fazer amigos. Agora que o conheço, consigo perceber porquê.
De Bagdade foi para a Turquia, onde apanhou um barco sobrelotado para a Grécia. “Tive medo, deixei de ter e voltei a ter outra vez. Estava encharcado e desconfortável, mas muito feliz, incapaz de olhar para trás. Finalmente estava a caminho da Europa, a terra livre dos americanos ou dos ingleses, ao lado de quem me tornei um homem”.
Chegando às ilhas gregas, depois de três horas de uma viagem aterradora, uma senhora alemã esperava os recém-chegados com paletes de garrafas de água, sorrisos e indicações. Hussein dirigiu-se a ela e pediu-lhe que lhe indicasse o caminho. “Segues sempre nesta direção, por esta estrada, na linha da costa. Atenção, mesmo que a estrada se desvie, nunca percas de vista o mar”, ao que ele lhe respondeu, gracejando, “Não se preocupe, minha senhora, não o perco de vista desde ontem à noite”.
Caminhou durante dez quilómetros até uma esquadra da polícia. Daí foi levado para Atenas e depois para a fronteira com a Macedónia, onde dormiu sobre os carris do comboio, tendo de se levantar a horas certas e saltar para a carruagem que partia para a Sérvia.
Na fronteira com a Hungria, permaneceu dois dias no campo de refugiados da ACNUR*. Hussein arregaçou as mangas e acabou por desempenhar várias tarefas de organização. A certa altura, arranjou forma de passar comida através das redes, graças a um amigo que tinha do lado de fora, dado que no campo só havia comida para as crianças e, para se sair e voltar a entrar, era necessário passar horas numa fila.
“Ajudei muita gente, principalmente como intérprete, fiz lá muitos amigos. A verdade é que ‘when you do good, you receive good’”, diz-me. Quando fazes o bem, o bem recebes, ou, sem sarcasmo, amor com amor se paga. Foi lá que conheceu Brian, um jornalista da AlJazeera que o quis entrevistar e a quem referiu o facto de tocar alaúde e de infelizmente não ter podido trazê-lo na viagem. Trocaram contactos e Brian prometeu-lhe que, entre amigos e conhecidos, havia de arranjar uma solução.
A aventura seguinte foi a passagem para a Hungria. Num grande grupo de refugiados, andou cem metros, a partir do campo, numa floresta cerrada. Lá encontrou um fio de couro com uma bolsinha, que ainda hoje traz consigo, e me mostrou. É um amuleto que o faz recordar-se, todos os dias, do que passou para aqui chegar.
Quando começaram a ouvir o barulho provocado pelas tensões na fronteira húngara, esconderam-se para poder espreitar e logo alguém apareceu, ordenando-lhes que andassem junto à cerca durante dois ou três quilómetros, até encontrarem uma entrada, onde lhes seriam retiradas as impressões digitais, após o que seriam encaminhados de autocarro diretamente para a capital.
Caminharam até ao ponto e encontraram um grupo de sírios que esperava o pôr-do-sol para tentar saltar a rede. Se deixassem as impressões digitais na Hungria, nunca conseguiriam obter asilo no país de destino: a Bélgica, onde nos encontramos hoje.
Nessa mesma noite, levantaram o arame farpado e entraram em terras húngaras. Caminharam durante duas horas. As famílias com crianças, que tinham ficado mais para trás, foram apanhadas pela polícia. Todos os outros começaram a correr, foram abordados por vários carros particulares que se ofereciam para os levar dali, mas tiveram medo de que pudesse tratar-se de uma emboscada. A dada altura, acabaram por ceder, pagaram mil euros, entre cinco pessoas, e alguém os levou a Budapeste.
Chegando ao famoso Sini Hotel, que tem albergado milhares de refugiados, tiveram de aguardar até às 9 da manhã do dia seguinte, por causa de excesso de lotação. Para os sírios, principalmente se forem curdos, é mais fácil ter alojamento porque o dono do hotel é um curdo, nascido na Síria. À porta, foram abordados por um senhor de chapéu e óculos escuros que se ofereceu para os levar até Munique por um preço exorbitante. Conseguiram negociar e reduzir o montante da passagem. No caminho, Hussein quis saber o nome de quem o transportava. “Chama-me Carro Vermelho”, foi a resposta que obteve.
Viajaram, então, num carro vermelho até à Alemanha, onde o mesmo condutor misterioso se ofereceu para os trazer até Bruxelas, por um preço mais baixo. Chegou aqui a 28 de Agosto e dormiu várias noites no parque que antes era campo de refugiados, enquanto trabalhava como voluntário.
Foi contactado por Brian, da AlJazeera, que já estava a recolher fundos para lhe comprar um alaúde. Reunido o dinheiro necessário, também com o contributo de refugiados seus amigos de viagem, após dois meses, o tão esperado instrumento aqui chegou, comprado em segunda mão a um velho músico na Turquia.
Explicou-me que o som que se pode tirar do instrumento melhora com o passar dos anos e que as madeiras com que o construíram já terão mais de cem anos. Esta semana, um Hussein ainda mais sorridente anima-nos a todos com a sua música, que alguns iraquianos na sala também sabem cantar.
No fim da história, olhou à volta e repetiu o seu lema: “when you do good, you receive good”.
Agradeço ao rapaz dos olhos verdes por me alegrar o dia com música e esperança. E ao Brian jornalista, que não ajudou só Hussein, ajudou-nos a todos nós, com a generosidade de lhe oferecer o alaúde.
Observando a forma como me olha nos olhos, enquanto falo, a sinceridade do seu discurso e a capacidade de rir daquilo que é trágico, compreendo os vários êxitos que teve na viagem. Posso identificar-me com todas as pessoas que o quiseram ajudar e ainda me surpreendo com a sua boa disposição contagiante. Revejo-me no seu sorriso e sorrio também. Hoje há sol e temos música.