Os especialistas que misturam conhecimentos nas áreas da medicina psiquiátrica, da psicologia ou da psicanálise, definem a melancolia, creio eu, como uma doença caracterizada por uma “tristeza sem razão”. O que me faz uma tremenda confusão, não por a definição me parecer desapropriada – longe disso -, mas por classificarem como uma doença algo que eu associo tão fortemente à felicidade.
Vem este intróito meio estranho a propósito de eu ter sabido, há cerca de duas semanas, da morte do Charlie Haden, célebre contrabaixista de jazz.
Homem singular e engagé, os hebdomadários dessa semana choraram a sua morte e lembraram a sua ligação a Portugal, em especial a Carlos Paredes, a sua prisão pela PIDE, a sua militância anticolonialista, enfim, todo um colorido que foi grande no passado e hoje está desbotado no pequeno mundo que nos habita.
Para mim, fica, acima de tudo, o seu contributo para a Grande Obra. Não tanto por via da ligação intensa que teve a alguns dos maiores compositores de jazz – como Ornette Coleman, que não me diz grande coisa; como Carla Bley, que muito admiro; ou como a divindade em pessoa (Jarrett) – mas por via de duas ou três pequenas músicas. Só isso. E pela sua por vezes tão especial reinvenção da música de outros compositores.
Charlie Haden tocava contrabaixo. É um instrumento ingrato, como foi a guitarra-baixo na música pop. Quem idolatrava um conjunto, nos saudosos anos 70 (e finais dos 60) – nos quais se compôs toda a música pop que verdadeiramente interessou -, por causa do “baixista”? Ou mesmo, quem conhecia os nomes dos guitarras-baixo nesse tempo? Os ídolos eram sempre os vocalistas, os guitarristas e a malta dos teclados. Porque o baixo, como em parte a bateria, eram instrumentos de acompanhamento, não eram solistas. Até se dizia, lembro-me, que o melhor baixo era aquele que organizava o som global sem se evidenciar. Enfim, no jazz poderia ter sido igual. Mas não foi. E por duas razões.
Primeiro, porque se criou o hábito, que eu odeio, de existirem solos (partes da música em que cada membro da banda toca sozinho) dos vários instrumentos envolvidos. Baixo ou contrabaixo incluído.
Depois, porque existiram homens como Charlie Haden. Que soube dar a este instrumento um papel de enorme relevância na construção das peças musicais, atribuindo-lhe uma presença de dimensão surpreendente.
Haden não foi um grande compositor. Pelo menos, em extensão. Mas foi extraordinário na reestruturação da música existente, “standards” ou não. Ou seja, o oposto do Jarrett. Talvez por isso tenham feito tão maravilhosa parelha. Foi com Haden que Jarrett publicou Jasmine, na sequência do maior turbilhão que atravessou a sua vida. E foi com Jarrett que Haden publicou o seu disco final, o muito recente Last Dance. Assim como foi um parceiro resplandecente de muitos outros notáveis, para além dos que já referi.
De entre as obras de sua composição, sugiro três trechos, que tocou com músicos notáveis: For Turiya, acompanhado por Pieranunzi (em First song); o muito célebre Silence, acompanhado pelo brasileiro Gismonti no fantástico disco ao vivo em Montréal (também o tocou com Pieranunzi, em Silence); e aquele pelo qual, penso, ficará para sempre conhecido, First song, este em três versões possíveis – com Pieranunzi (em First song), com Gismonti (no álbum de Montréal) e com Metheny (em Beyond the Missouri sky).
De entre os trabalhos realizados com música de outros, sugiro Goodbye (de Gordon Jenkins), em Jasmine, e o fabuloso Maracatú de Gismonti, no disco de Montréal.
Charlie Haden deixou o som de um contrabaixo para memória futura. O seu instrumento estava destinado à discrição, mas ele evidenciou-o numa beleza grandiosa e doce, grave, quase dolorosa.
Tão triste e irradiante de felicidade como a melancolia.