Depois de, em 1994, numa viagem a Espanha, ter tido um acidente de automóvel que me deixou paraplégica aos 23 anos, estive um ano num hospital de Toledo para voltar a aprender tudo de novo de uma forma diferente. Quando regressei a Portugal, fiz duas grandes viagens de carro pela Europa com amigos e não me deram muito prazer. Há 30 anos, as acessibilidades não eram o que são hoje – levava sempre uma tábua atrás, por exemplo, para me poder sentar nas banheiras. Sair de casa implicava perder a minha independência. Porém, quando chegava, ficava muito contente, porque era sinal de ter conseguido. Uma sensação de superação e de vitória que continuo a sentir hoje.
A cada viagem, as coisas corriam melhor e, no início dos anos 2000, fui a Itália com três amigos. Estivemos em Florença, passámos por Milão e fomos a Veneza. Ali, as pontes sobre os canais têm todas degraus e, felizmente, ainda não havia o Street View do Google Maps, senão, não teria ido. A cada ponte, tinham de levantar a cadeira de rodas, degrau a degrau. Os outros turistas também ajudavam. Eu era a que menos fazia e foi importante para ver que os impossíveis não são assim tantos e que saber aceitar a ajuda dos outros não é fraqueza. Todos precisamos dela.
Sou engenheira informática e já tinha viajado sozinha, em trabalho, a Bruxelas, um par de anos antes. O meu primeiro pensamento foi recusar, mas gosto de desafios e aí percebi que seria possível. Mais tarde, quando comecei a jogar ténis adaptado, em cadeira de rodas, também fui aos Açores sozinha, com a bagagem atrás, mala de viagem, cadeira de jogo e saco desportivo. A federação de ténis teve de criar o campeonato nacional misto só para eu poder participar, porque era a única mulher.
Essas experiências ajudaram-me a nunca entrar em pânico, mas costumo viajar com o meu marido, o Fernando. Casámos em 2010 e foi a partir da lua de mel, nos EUA, que passei a encarar as viagens de forma mais confiante e ambiciosa. Já tínhamos ido às Caraíbas, na fase de namoro, porque queria experimentar o mar quentinho e azul-turquesa, mas estar em Nova Iorque e, depois, no Havai foi o clique que faltava. Percebi que conseguia fazer muita coisa fora dos resorts e nas ruas, principalmente nestes destinos mais evoluídos. Os passeios já estavam rebaixados e consegui encontrar casas de banho públicas acessíveis, que é também uma das grandes dificuldades em viagem.
No primeiro dia no Havai, estava muito cansada e decidi não acompanhar o Fernando numa excursão matinal. Quando acordei, fui para a rua sozinha, junto à praia de Waikiki. Acenam-me de uma carrinha e pensei que não era para mim, ninguém me conhecia ali daquele lado do mundo. Mas era… No vidro, reparei num dístico de pessoa com deficiência. Era de um tetraplégico que estava a chegar para ir fazer surf com a ajuda de uma amiga. Falámos um pouco e, depois, fiquei a ver.
No final desse ano, caí num buraco em Londres, parti o colo do fémur e tive uma série de complicações, que resultaram em dez cirurgias em oito anos. Mas nunca mais deixei de viajar. Em 2012, fiquei-me por Madrid, uma das minhas cidades favoritas. Apesar de ter sido lá que vivi um período muito dramático da minha vida, Espanha continua a ser um dos meus países preferidos, desde logo porque é um dos mais acessíveis que conheço. Mas também porque me identifico com o espírito dos espanhóis, estão sempre em festa. Madrid tem muita vida e gosto da confusão, de visitar as cidades em dias de semana, à hora de ponta.
Ski, sim, paraquedas, não
Em 2013, fomos ao Canadá, Toronto e Quebeque, e achei tudo muito organizado e amplo. Demos um pulinho a Buffalo, nos Estados Unidos da América, que mais parece uma cidade-fantasma. Na fronteira, acharam muito estranho que nós quiséssemos ir ver a casa do Frank Lloyd Wright (House Martin). O Fernando é engenheiro civil e ambos gostamos de arquitetura. Passámos por Niagara-on-the-Lake, uma zona de vinhas, e pelas famosas cataratas – muito giro.
Começaram, então, as grandes viagens por várias cidades, através de diferentes meios de transporte: comboio, avião, carro ou barco. Só não experimentei o balão de ar quente na Capadócia, na Turquia, porque não me deixaram, mas um dia hei de lá regressar. Também fiz ski adaptado na Serra Nevada e adorei, mas isso não voltarei a fazer. É fácil partir um braço – se isso me acontecer, não consigo fazer nada. Sou destemida, mas tenho os meus limites. Já estive para me lançar de paraquedas e desaconselharam-me por causa do problema que tenho na anca.
Gostamos de diversificar os destinos e temos vindo a alternar a Europa com outros continentes. No ano passado, fizemos até uma volta ao mundo. Tinha um desejo antigo de conhecer a Austrália e, por ser tão perto, tornava-se obrigatório dar um salto à Nova Zelândia. Trata-se de um lugar lindíssimo, que me remeteu à maravilhosa Islândia, onde cada curva traz uma paisagem do outro mundo. E como não ir dali até ao paraíso, na Polinésia Francesa?
Há 30 anos, as acessibilidades não eram o que são hoje – levava sempre uma tábua atrás, por exemplo, para me poder sentar nas banheiras. Sair de casa implicava perder a minha independência. Porém, quando chegava, ficava muito contente, porque era sinal de ter conseguido. Uma sensação de superação e de vitória que continuo a sentir hoje
Era mais caro ficar em Bora Bora e por isso optámos por Moorea, onde chegámos de barco a partir de Taiti. Tenho de confessar que ver-me ali, naquelas águas do Pacífico, no meio do nada, foi um marco tremendo. Senti-me capaz de tudo, poderosa. Uns anos antes, em 2016, vivi uma sensação idêntica, na Muralha da China. Achei sempre que nunca lá iria e, de repente, ali estava eu. É daquelas conquistas que me fazem pensar que consigo ir aonde quiser e que o impossível, afinal, estava só na minha cabeça.
Queríamos regressar da volta ao mundo pela América do Sul, passar na ilha da Páscoa, mas a gestão do tempo trouxe-nos pela Califórnia. Em 2025, espera-nos o Báltico, com paragens na Finlândia, Estónia, Letónia e Polónia.
De outras paragens, guardo ótimas recordações da Escandinávia, de Berlim e de Praga, da arquitetura futurista de Singapura, da limpeza do Japão ou da comida de rua na Coreia do Sul. Em Hong Kong, é difícil atravessar estradas nas passagens pedonais e recordo-me que, certo dia, levaram-nos por dentro de prédios e túneis até ao nosso destino, num labirinto que nos pareceu um filme de espiões.
Depoimento recolhido,por Rui Antunes