Sou o nadador com Síndrome de Down mais rápido do mundo. [Nos EUA, na prova Athletes Without Limits & USA Down Syndrome Swimming, nos 50 metros foi o primeiro com Síndrome de Down, a nível mundial, a baixar dos 30 segundos.] Sei que sou o melhor do mundo nesta condição e já ultrapassei alguns dos meus recordes nos campeonatos mundiais e europeus [representa a Seleção Nacional através da Federação Portuguesa de Natação] e em provas nacionais [atleta do Sporting].
Só me falta participar nos Jogos Paralímpicos. Mas, para eu entrar, têm de sair outros, porque as federações têm quotas de participação. [O ideal seria existir um grupo em que competissem só os atletas com Síndrome de Down, resultando numa prova mais justa.]
Comecei a nadar aos quatro anos, quando andava no colégio. Depois, o meu treinador, Rui Gama, foi buscar-me para aperfeiçoar a técnica, para entrar na natação adaptada do Sporting. Nunca tive medo da água e o treinador estava sempre lá para ajudar.
Aos 13 anos, comecei a competir. Sabia que por ser mais baixo, ter membros mais pequenos e massa muscular diferente, precisava trabalhar mais do que os nadadores da natação pura. Tenho de alimentar-me bem e manter-me em forma.
Tenho de ter dois braços fortes para cada batida que faço e agora estou bem com isso. Também é preciso tratar bem as pernas, são o motor da natação. É por isso que não me deixam jogar futebol, nem andar de skate, para não me magoar, nem me lesionar. Jogar futebol só em casa, na PlayStation.
“O espírito sai do corpo”
Agora, vou estar de férias até ao final do ano – e até comi um hambúrguer no pão, com batatas fritas e coca-cola – mas, em altura de provas, costumo deitar-me quase sempre às dez e meia, para de manhã acordar perto das seis e meia. Depois, tomo o pequeno-almoço, às vezes como uma omelete, uma torrada, gosto de fazer “crepioca” com queijo fresco ou fiambre e bebo café, tem de ter proteína para estar forte. Nada de açúcares. Arranjo-me sozinho, não preciso de ajuda, oriento-me bem. No treino, fora de água faço exercícios de alongamentos para ativar o corpo; depois, são duas horas diárias dentro da piscina. Também vou ao ginásio, duas vezes por semana. No intervalo dos treinos, costumo comer uma barrita, frutos secos ou uma banana, gosto muito e é proteína, tem cálcio e magnésio.
Entre as partidas e as chegadas, gosto mais das chegadas, porque em mariposa, o estilo de que mais gosto, são coordenadas. Sou um velocista, por isso é que gosto muito das chegadas. Sou forte. Não sei bem a que velocidade nado, mas o pai chama-me Flash, o meu super-herói preferido, tal como o Aquaman.
Entre o salto, a reação, o percurso subaquático e a viragem, o treinador insiste muito nos subaquáticos e nas viragens, para fazer a cambalhota mais rápida, para tentar ganhar aos outros. Quando salto, tenho uma reação bem rápida e levo o meu percurso subaquático sempre ao máximo.
Na natação, não há nada difícil para mim. O meu corpo sente liberdade e sou feliz. Quando entro na água, entro noutro mundo, é um mundo muito bom. Para mim, existe um mundo fora de água e outro dentro de água. O meu espírito sai do meu corpo.
Também penso quando vou a nadar. Penso: “Será que o treinador está a ver e estou a fazer tudo bem?” O treinador quando vê as minhas provas está sempre contente.
Quando estou em prova e o Rui precisa de me dizer alguma coisa, assobia muito. Tem vários assobios consoante a mensagem, marca o ritmo que tenho de fazer.
[“O Vicente tem uma coisa que o distingue: interioriza muito bem as indicações que o treinador lhe dá. São coisas de facto muito específicas, dependendo de cada uma das provas e até dos adversários”, explica o pai.]. As medalhas são boas, quando subo ao pódio não fico nervoso.
“Injustiças não sinto”
Gosto muito dos meus ídolos, os nadadores Michael Phelps, Léon Marchand, Caeleb Dressel e o Diogo Ribeiro, treinamos juntos quando nos encontramos no Centro de Alto Rendimento do Jamor.
Em 2023, terminei o 12.º ano na Escola Secundária Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa. Fiz os três anos do curso profissional de Pastelaria e Cozinha, que tem acordo com a Escola Profissional de Hotelaria e Turismo de Chiado. Em janeiro, vou começar a estagiar no bar e refeitório do liceu. Vai ser uma manhã por semana, assim dá para treinar e fazer o estágio.
Comecei a cozinhar, a ajudar os meus pais e a minha irmã em casa em alguns cozinhados, como massa à bolonhesa que é o meu prato favorito e fazia alguns doces na escola, como mousse de maracujá, pastéis de nata, bolos de arroz, pão de ló de Ovar, e depois levava para casa.
A minha vida, além da natação, é um desafio. Sou um rapaz de desafios. Gosto de competir, de nadar e de puxar pelos meus colegas. Quanto há uma estafeta, apoio sempre os meus colegas. Também penso que tenho de ser forte, que tenho de continuar a trabalhar e nunca desistir. Não há nada que pense que não sou capaz de fazer. É uma pressão que dá motivação.
Fico triste quando alguém fala mal de outra pessoa ou de mim. O que me dá força é ser amigo de todos, não me chatear com ninguém, fazer as minhas coisas bem feitas para deixar os outros felizes. Respeito sempre os meus colegas e meus amigos, protejo os que gosto muito.
Ter Síndrome de Down não me afeta, mas penso que queria ser o maior, o mais forte, o mais musculado, como os nadadores olímpicos. É muito difícil conseguir ter aquele corpo.
Mas injustiças no dia a dia não sinto. Estou sempre a pedir ao pai para tirar a carta de condução, gostava muito de conduzir um carro automático igual ao dele.
Uso telemóvel para ver Internet e redes sociais. Tenho um canal no YouTube para cantar, gosto muito de ouvir as “músicas de amor” do Fernando Daniel e do Mickael Carreira, ouço as letras com atenção. Na semana passada, usei a Inteligência Artificial [brev.ai]: fiz uma letra sobre a natação, O Rei dos 50 Livres, e o programa transformou numa canção.
Depoimento recolhido por Sónia Calheiros com apoio de Nélson Pereira, pai do Vicente