Ando sem paciência para viajar. Estou cansada daquele pássaro voador. Por acaso, as três últimas viagens até correram muito bem. Foram espetáculos incríveis, o público adorou. Em três semanas, estivemos em Lisboa, depois na cidade espanhola de Tarragona e a seguir em Berlim. Por vezes, também ficamos um mês inteiro só no estúdio a ensaiar, na nossa base que é a Madeira. Tudo depende da programação, dos festivais, dos teatros.
Na companhia Dançando com a Diferença, que promove a inclusão de pessoas com deficiência, somos três monitores e organizamo-nos para cada um dar uma das três aulas do dia. Quando temos espetáculos ao fim de semana, quem entra tem de ensaiar e quem não entra dá as aulas.
A rotina de acordar, arranjar a mochila, apanhar transporte, dançar, almoçar, dançar, voltar para casa, preparar o jantar, estudar e dormir não combina comigo. Eu sou africana, preciso de sair, gosto de me divertir, de ouvir uma balada e de beber uma cerveja ou uma poncha. Tenho-me esquecido. Com a idade, estou a ficar preguiçosa. Até já reduzi de cinco para três as cadeiras do curso de Ciências Sociais, que estou a tirar à distância, mas nestas três semanas fora de casa tive de entregar três trabalhos. Um terror. Já pensei em desistir, mas lido mal com esta palavra. É um desafio que vou esforçar-me por ultrapassar.
Vir para o Funchal, em 2019, foi uma mudança drástica na minha vida. Em Maputo, onde nasci e cresci, ninguém me segurava. Lá, não esperamos pelo fim de semana para socializarmos, e eu nunca fui de parar em casa. Morava com a minha grande família e, desde que sofri o acidente [foi atropelada e ficou com as pernas esmagadas], aos oito anos, passei a ser a mais mimada dos cinco irmãos.
Eles não me deixavam fazer nada, nem sequer cozinhar, por isso não estava preparada psicologicamente para viver sozinha. Nos primeiros tempos aqui nesta ilha incrível, só chorava e ligava para os meus pais a dizer que queria voltar. Sentia um vazio enorme, mas eles sempre me incentivaram. Ainda hoje, quando tenho mais saudades e falo em regressar, o meu pai responde: “Vais voltar para onde? Não te quero em minha casa.” Já não estou com eles há dois anos, em 2025 tenho de ir vê-los, não falha.
Foi minha a decisão de aceitar o convite do Henrique Amoedo, o diretor artístico da Dançando com a Diferença. A juntar ao desafio de me emancipar enquanto mulher, sonhava integrar uma companhia de dança internacional, para aprender um pouco mais e dar de mim até onde pudesse. Se eu ficar no meu conforto, é claro que não vou longe, pensei. Preciso de quebrar essas barreiras e ver o que me espera do outro lado do mundo.
“Ganhei o mundo”
Como o Henrique me tinha avisado, a Madeira é um sobe e desce constante, nada acessível para pessoas como eu. No entanto, há transporte para gente com mobilidade reduzida, por marcação com 48 horas de antecedência, e com o tempo comecei a usar também os transportes públicos, a apanhar boleia dos meus colegas ou um Uber. Eu sou independente na minha cadeira de rodas, como já era em Moçambique.
Depois do acidente, ainda esperei uns cinco anos para ter uma. O meu pai insistiu para eu não deixar a escola, mas, na minha cabeça, era impossível continuar. Andava na segunda classe. Então, os meus irmãos e outros familiares passaram a levar-me ao colo e às costas para as aulas. Às tantas, já os meus colegas se revezavam para me carregar ao longo de vários quarteirões, numa onda que me emocionava. Eram crianças de nove anos, como eu. Foi incrível. Se eu tinha uma vontade, os outros estendiam-na ainda mais.
Também foi na rua que me puxaram para a dança. Certo dia, tinha já 18 anos, fui abordada por uma desconhecida, hoje grande amiga, para ir conhecer um grupo. Nunca tinha visto tantas pessoas com deficiência juntas. Detestei uma e outra vez, mas, não sei explicar porquê, continuei a assistir. Não me atrevi a sair da cadeira até terem passado uns dois meses. Quando um belo dia desci para o chão, ganhei o mundo. De repente, eu tinha espaço e comecei a apaixonar-me. Dois anos depois, fizemos uma apresentação em palco e vi as pessoas a aplaudir. Pensei: “É isto que eu quero. Quero dar alegrias e contribuir para transformar o mundo. Quero fazer as pessoas aplaudirem a vida inteira.”
Na Madeira, a Dançando com a Diferença abre-me horizontes ao mesmo tempo que me dá a oportunidade de trabalhar com outros coreógrafos, como a Marlene Monteiro Freitas ou o Panaibra Canda, com quem dei esses primeiros passos em Maputo. O projeto fascinou-me. Sempre que penso em desistir, concluo que não fui feita para isso. Recordo as pessoas emocionadas que vêm ter comigo no fim dos espetáculos, como ainda agora em Berlim, e me fazem chorar de emoção. É uma chapada na cara, a prova de que consegui o que queria: contribuir em palco para melhorar o mundo, nem que seja uma só pessoa do público.
Já viajei ao Brasil, Alemanha, França, Suíça, Suécia, Portugal, Madagáscar, África do Sul, EUA, Austrália, etc. Não sei porquê, ainda não estive na Ásia, tenho de me empenhar mais. No palco, aprendi a vencer as minhas limitações, mas hoje, ao dançar, não é sobre superar a minha dificuldade enquanto uma mulher com deficiência. Já não é sobre isso. É sobre oferecer alguma coisa na condição em que o meu corpo se encontra. O palco é o lugar onde me consigo expressar, onde sinto que pertenço, onde tenho o mundo inteiro para mim, sem limitação nenhuma. Eu sou Mariana, sou artista e é isto que me alimenta.
Depoimento recolhido por Rui Antunes