Na primeira pessoa: “Não é normal um cigano entrar na universidade. É como ver um cão a andar de bicicleta. Na comunidade, muitos deixaram de me ver como tal”

Foto: Marcos Borga

Na primeira pessoa: “Não é normal um cigano entrar na universidade. É como ver um cão a andar de bicicleta. Na comunidade, muitos deixaram de me ver como tal”

Desde criança, os meus melhores amigos são os livros. O meu pai tinha enciclopédias em casa e, antes de entrar no primeiro ciclo, eu já sabia ler e escrever algumas palavras. Ao crescer como filho único de uma família pobre, numa pequena aldeia do Interior chamada Zebreira, perto de Idanha-a-Nova, as leituras foram permanecendo como companhia e, talvez por isso, tirava boas notas na escola.

Assim continuei até ao 11º ano, mas nunca me passou pela cabeça seguir os estudos. Afinal, sou cigano, e os ciganos trabalham na venda ou no campo. Vivia convencido de que haveria de ser esse o meu futuro também. Estudar era perda de tempo, uma fantasia de criança a sonhar que seria um dia super-herói. No início do 12º ano, apesar de nunca ter chumbado e do apoio dos professores, desisti da escola.

Durante toda a vida, os meus pais viveram do trabalho de cigano, em mercados e feiras, a vender calçado. Como a maioria das famílias na zona, também chegaram a trabalhar nas plantações de tabaco, mas esse sustento acabou há mais de 15 anos. A região empobreceu ainda mais.

Eles nunca deixaram de insistir para eu completar, pelo menos, o ensino secundário. Uma vez que estive desocupado, durante esse ano sabático, acabei por ceder, mais para deixar de os ouvir. Completei o 12º ano, com média de 17,5 valores, e eles continuaram a pressionar-me para tentar a universidade. Sem grande entusiasmo, acedi novamente. Sempre gostei de Filosofia e Economia, mas escolhi seguir Gestão, no Politécnico de Castelo Branco, mais perto de casa.

Não é normal um cigano entrar na universidade. É como ver um cão a andar de bicicleta. Dentro da comunidade, existe o medo da perda de identidade, o que não faz muito sentido. Sinto-me cigano, os meus antepassados são ciganos, mas muitos deixaram de me ver como tal. “Quem? O Natanael? Esse não é cigano”, passámos a ouvir.

Era ostracizado, os meus pais revoltavam-se, mas essa visão começou a mudar a partir do momento em que ganhei notoriedade na comunicação social. Foi quase uma mudança de 180 graus de um momento para o outro. Passei a ser mais respeitado e admirado, como se fosse algo inalcançável, estilo Harry Potter. Até me chamam para dar palestras, sobretudo em escolas e a jovens de etnia cigana.

“Tiveram medo de me contratar”

A nossa comunidade tem um índice de abandono escolar muito alto, e isso tem de mudar. Temos de fazer um esforço para sermos mais cultos e integrados. Compreendo que são mais de 500 anos de perseguição, mas racismo e xenofobia vão existir sempre. Precisamos de abrir a mente e sair da nossa bolha, fazer a nossa parte para que esse ódio seja mitigado.

Não nego que temos problemas, mas também culpo o Estado. Aquelas ajudas diretas, muitas vezes, parecem traduzir a mensagem: “Vai ali para o teu bairro social, recebe a tua esmola e cala-te.” Isso não é bom, porque, de repente, aparecem pessoas a quererem criar uma espécie de guetos de Varsóvia, como aconteceu com os judeus. Chega-se a um ponto em que nem um ser humano inferior somos. Não somos sequer humanos.

Nunca me vitimizo, porque sou uma pessoa normal, e toda a gente, em algum momento, vai encontrar-se numa situação de desvantagem, a não ser que seja filho do Elon Musk. É importante termos essa mentalidade de seguir em frente. No entanto, ao terminar o meu curso de Gestão, comecei a ficar frustrado por não conseguir arranjar um estágio profissional, enquanto colegas meus receberam propostas ainda antes de obterem a licenciatura.

Fui a inúmeras entrevistas e enviei muitos currículos, mas ninguém queria dar-me uma oportunidade. Uma vez, disseram-me na cara que não me queriam por causa da minha etnia. Num banco, quando eu ia a sair da sala de reuniões, ouvi-os a falarem bem de mim até que disseram: “Mas é cigano.” Noutra empresa de Castelo Branco, uma colega de curso que lá trabalhava contou-me que tinham gostado de mim, mas tinham medo de me contratar porque eu teria de mexer em dinheiro.

Não me deixei ir abaixo. Havia a possibilidade de, apenas com mais um ano de estudos, concluir uma segunda licenciatura, em Gestão de Recursos Humanos. Como não tinha conseguido nada no mercado de trabalho, avancei. Foi nesta área que finalmente encontrei trabalho no Centro de Apoio Tecnológico Agroalimentar, em Castelo Branco. No próximo mês, termino o ano de estágio profissional e já estou com alguma ansiedade para saber se irei continuar.

A nossa comunidade tem um índice de abandono escolar muito alto, e isso tem de mudar. Compreendo que são mais de 500 anos de perseguição, mas racismo e xenofobia vão existir sempre. Precisamos de abrir a mente e sair da nossa bolha, fazer a nossa parte para que esse ódio seja mitigado

Entretanto, escrevi um livro (Rumo, lançado em abril de 2023, pela Astrolábio Edições) e decidi prosseguir com os estudos. Estou a tirar o mestrado em Gestão de Empresas e, depois, quero fazer um doutoramento. O meu maior sonho é ser, um dia, professor universitário.

O livro surgiu de um encontro fortuito com uma ex-professora, numa das minhas viagens até à Biblioteca Municipal de Idanha-a-Nova. Ela sugeriu-me a ideia e, logo nesse dia, estava eu desempregado, atirei-me de corpo e alma ao desafio.

Os livros ensinaram-me que a minha vida não pertence a ninguém. Nietzsche inspirou-me a ser um espírito livre. Que diferença faz, na minha condição de cigano, eu estar a trabalhar num escritório ou numa feira? Nenhuma. Até é melhor, porque estou mais confortável, sejamos sinceros. Não quero ficar preso às normas. E, sim, sinto-me dono e senhor do meu destino, como diz o poema de William Henley.

Outro conceito interessante, que me ajudou muito, é o do estoicismo. A ideia de Epicteto de que a nossa vida está dividida entre os 50% que nós controlamos e os 50% que nós não controlamos. Não vale a pena preocuparmo-nos com os segundos, temos é de dar o nosso melhor em relação aos primeiros. Recentemente, entrei para a Ordem dos Economistas, e toda a família se alegrou. A vida vai-nos dando pancada, e a forma como nos levantamos é que define quem nós somos.

Depoimento recolhido por Rui Antunes

Palavras-chave:

Mais na Visão

Mais Notícias

Cosentino inaugura o Cosentino City Porto e reforça a sua presença em Portugal

Cosentino inaugura o Cosentino City Porto e reforça a sua presença em Portugal

Letizia e Felipe VI celebram 21.º aniversário de casamento

Letizia e Felipe VI celebram 21.º aniversário de casamento

Porto, Matosinhos e Vila Nova de Gaia recebm a 9ª edição do Festival DDD - Dias da Dança

Porto, Matosinhos e Vila Nova de Gaia recebm a 9ª edição do Festival DDD - Dias da Dança

Recorde os

Recorde os "looks" de Letizia nos Prémios de Literatura 'Miguel Cervantes'

As melhores imagens da equipa PRIO - Exame Informática- PEUGEOT no Gaia Eco Rally

As melhores imagens da equipa PRIO - Exame Informática- PEUGEOT no Gaia Eco Rally

Em

Em "A Herança": Vicente despede Pilar da fábrica

Primeiro contacto: Renault 4 elétrico revela muita funcionalidade e tecnologia

Primeiro contacto: Renault 4 elétrico revela muita funcionalidade e tecnologia

Parabéns, Júlia Pinheiro - 60 anos em 60 fotos

Parabéns, Júlia Pinheiro - 60 anos em 60 fotos

Guia de essenciais de viagem para a sua pele

Guia de essenciais de viagem para a sua pele

A história de Kaia Gerber que tem mesmo de conhecer

A história de Kaia Gerber que tem mesmo de conhecer

Moda: Saias

Moda: Saias

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

A poesia que sai à rua em Salvador

A poesia que sai à rua em Salvador

Antecipar o futuro: a visão da WTW sobre os riscos emergentes

Antecipar o futuro: a visão da WTW sobre os riscos emergentes

Clima: como o Alentejo Litoral se prepara para a “guerra”

Clima: como o Alentejo Litoral se prepara para a “guerra”

Cinema: O IndieJúnior já chegou a Lisboa!

Cinema: O IndieJúnior já chegou a Lisboa!

O outro cancro do tabaco

O outro cancro do tabaco

"Um cliente que fique sete noites no hotel vale tanto como sete clientes que fiquem uma noite"

Dia da Terra: O que podemos fazer para travar as alterações climáticas?

Dia da Terra: O que podemos fazer para travar as alterações climáticas?

Portugal 2050: desafios e oportunidades na transição verde

Portugal 2050: desafios e oportunidades na transição verde

OpenAI compra empresa de design de hardware de Jony Ive por 6,5 mil milhões de dólares

OpenAI compra empresa de design de hardware de Jony Ive por 6,5 mil milhões de dólares

O importante contributo das empresas na transição energética

O importante contributo das empresas na transição energética

Moda: Mensagem Recebida

Moda: Mensagem Recebida

Novo restaurante em Lisboa conquista caras conhecidas

Novo restaurante em Lisboa conquista caras conhecidas

"Tucci em Itália": À descoberta das iguarias, comida de rua e repastos tradicionais

Vencedores e vencidos do 25 de Abril na VISÃO História

Vencedores e vencidos do 25 de Abril na VISÃO História

Quis Saber Quem Sou: Será que

Quis Saber Quem Sou: Será que "ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais?"

CARMO AFONSO: “De forma cíclica, a humanidade entra num movimento autodestrutivo”

CARMO AFONSO: “De forma cíclica, a humanidade entra num movimento autodestrutivo”

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

"O FIMFA é uma coisa que ainda muita gente não descobriu, mas, quando descobre, fica fascinada"

Um século de propaganda na VISÃO História

Um século de propaganda na VISÃO História

Cancro: Não é verdade que os tumores são menos

Cancro: Não é verdade que os tumores são menos "agressivos" quando se é mais velho

Cidadania digital: o papel das empresas

Cidadania digital: o papel das empresas

Thomson está a chegar a Portugal e quer conquistar mercado

Thomson está a chegar a Portugal e quer conquistar mercado

Óculos de sol: os 50 mais desejados

Óculos de sol: os 50 mais desejados

As imagens da terceira cirurgia plástica de Fanny Rodrigues

As imagens da terceira cirurgia plástica de Fanny Rodrigues

Salão do Móvel: design e inovação em Milão

Salão do Móvel: design e inovação em Milão

Inês Herédia e Gabriela Sobral anunciam separação

Inês Herédia e Gabriela Sobral anunciam separação

Dores de cabeça: quando é hora de ir ao médico?

Dores de cabeça: quando é hora de ir ao médico?

Matérias-primas: quatro portugueses entre os 47 projetos estratégicos da UE

Matérias-primas: quatro portugueses entre os 47 projetos estratégicos da UE

CARAS Decoração: a obra de Calatrava numa edição de arte limitada

CARAS Decoração: a obra de Calatrava numa edição de arte limitada

VOLT Live: Como a Atlante quer melhorar a rede de carregamento e tecnologia para lidar com apagões

VOLT Live: Como a Atlante quer melhorar a rede de carregamento e tecnologia para lidar com apagões

Neste fim de semana, Lisboa vai estar mais verde

Neste fim de semana, Lisboa vai estar mais verde

Pizzaria ZeroZero: La bella Italia em Lisboa

Pizzaria ZeroZero: La bella Italia em Lisboa

Miúdos a Votos: Cheira a primavera e a livros nos jardins da Fundação Gulbenkian

Miúdos a Votos: Cheira a primavera e a livros nos jardins da Fundação Gulbenkian