Vivo em Portugal há nove anos. Tinha 20 quando deixei São Paulo, no Brasil, e fui viver para o concelho de Mafra, na casa da minha mãe. Era responsável técnico numa empresa de transformação de plásticos, na Venda do Pinheiro, e, ao mesmo tempo, continuava os meus estudos no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL).
No dia em que fiquei efetivo na empresa, a 12 de setembro de 2019, saí do trabalho e fui para a universidade, de mota, pela estrada nacional. Podia ir pela autoestrada, mas preferia passar pelas localidades e ver as pessoas e as casas, com uma sensação de liberdade e de proximidade em movimento.
Um automóvel que vinha no sentido contrário entrou na minha faixa, passou o traço contínuo e foi contra mim. Não me lembro de mais nada.
Quando me socorreram, eu já estava em coma. Assim que cheguei ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, disseram à minha mãe para se despedir de mim, mas a vida tinha outros planos.
Tive um traumatismo cranioencefálico grave do lado direito e uma fratura exposta no rádio esquerdo. O capacete terá saltado com o impacto e a lesão cerebral, no hemisfério direito, causou danos na mobilidade e no equilíbrio, impedindo-me de estar em pé ou sentado. O funcionamento cognitivo não foi muito afetado, mas fiquei com uma hemiparesia (paralisia parcial) no lado esquerdo do corpo.
Saí do coma 14 dias depois e, contrariamente ao esperado, não foi preciso fazer uma traqueostomia para começar a respirar sem máquinas. Contudo, esperava-me um longo caminho até poder voltar a andar. Na altura, não tive qualquer noção do que estava a acontecer, e ninguém me falava sobre isso. Desse período tenho apenas alguns flashes de memória.
Estive internado três meses e duas semanas no Hospital de Santa Maria e passei 21 dias no Hospital do Mar. Lembro-me de ficar emocionado quando consegui dar o primeiro passo, com a terapeuta e três auxiliares a segurarem-me. Tive visitas de amigos e colegas de trabalho, mas essa fase acabou.
Veio o isolamento e, a seguir, a pandemia. Nos quatro meses de internamento, nas residências da Santa Casa da Misericórdia, em Alcoitão, dava por mim a chorar e a gritar o dia todo, pelas dores e, sobretudo, pela revolta: “Porquê eu?” Antes do acidente, estava à procura de casa para viver sozinho ou com a namorada. De repente, perdi a independência e a autonomia e estava ao colo da minha mãe. Ficar totalmente dependente dela para assegurar necessidades fisiológicas ou mudar fraldas foi simplesmente horrível.
No dia em que voltei para casa, e já a recuperar o funcionamento cognitivo, a minha namorada, que me tinha acompanhado até então, terminou o relacionamento sem dar explicações.
Angustiado, eu só perguntava quando é que voltava a andar. A ansiedade dificultava a reabilitação. Um dia, a médica fisiatra disse-me para não fazer comparações com os outros: “Nathan, cada caso é um caso.” Aquela frase ficou para a vida.
No Campus Neurológico Senior, em Torres Vedras, a psicoterapia ajudou-me imenso a lidar com a culpa, os estados depressivos e o stresse. No Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, comecei a ver progressos com a fisioterapia, hidroterapia e terapia ocupacional.
“Já estive no local do acidente”
Tive a minha primeira cadeira de rodas manual, leve e dobrável, e reduziram-me a medicação; fiquei apenas com um fármaco para as dores causadas pelo encurtamento do nervo da perna e do braço, devido à lesão cerebral e ao tempo em que não me movimentei. Já estive no local do acidente e não senti nada.
Senti necessidade de estar mais ativo e queria voltar a conviver. Através da minha mãe, conheci a Associação Novamente, que apoia pessoas com traumatismos cranioencefálicos e outros danos cerebrais adquiridos, e envolvi-me em projetos virtuais de partilha de histórias.
Há dois anos, troquei a cadeira manual por uma elétrica e conquistei alguma liberdade. Em outubro do ano passado, comecei a andar. De acordo com os relatórios médicos e psicológicos, ainda há margem para evoluir na reabilitação. Sabê-lo motiva-me bastante, e vou manter o treino cognitivo online e a psicoterapia.
Continuo de baixa, e os tratamentos e o salário que recebia têm sido pagos pela seguradora. Quando regressar ao local de trabalho, com um grau de incapacidade, não vou poder estar muito tempo de pé nem conseguir entrar numa máquina e usar o meu braço esquerdo acima da minha cabeça, como fazia. Mas sei fazer outras coisas e vou ter outra função, com um horário reduzido.
Voltei a aprender tudo de novo com apenas uma mão. Só uso a cadeira de rodas para longas distâncias, que são aquelas cujos obstáculos ainda não conheço. Exercito-me a subir e a descer os sete degraus no exterior de casa e faço surf adaptado, com a Associação Salvador. É magnífico ir deitado na prancha e sentir a onda a quebrar atrás de nós! O ambiente é muito bom e ganhei uma nova família.
Com o espaçamento das sessões para breve, vou poder fazer passeios desportivos e outras atividades através do projeto Viver Novamente. Quando contei a minha história num encontro promovido pela Associação e referi que “cada caso é um caso”, expressei o desejo de tatuar a frase no braço e, na semana passada, concretizei esse desejo!
A lesão pode ficar para a vida, mas acredito que vou ser muito mais do que sou hoje. Cada dia representa pequenas conquistas. Aos poucos, elas vão sendo muitas e podem trazer uma nova vitória.
Depoimento recolhido por Clara Soares