Será possível a mesma alma que escreveu os versos luminosos de A cor do canto, de Daniela Mercury, estar prestes a estrear um drama teatral sobre a solidão daqueles que não se consideram dignos, sequer, de serem olhados, quanto mais amados?
Sim. É a alma de Tiago Torres da Silva (TTS), escritor, poeta, letrista, encenador e produtor que entregou quase 30 dos seus 55 anos de vida ao teatro e à música
Fê-lo através de peças, romances, canções e fados interpretadas por nomes como Simone de Oliveira, Dulce Pontes, Marisa Liz, Ney Matogrosso, Maria Bethânia, Celeste Rodrigues, Carminho ou Maria João Quadros.
Na forma como faz teatro, TTS procura criar “um lugar para falar do que não se fala”. Nesta entrevista, conta como a sua mais recente criação, Glory Hole, em cena no Teatro da Garagem, de 6 a 9 de fevereiro, põe a nu um tipo de solidão que preferimos ignorar: aquela alimentada pela crença de que sermos nós mesmos jamais será motivo suficiente para que alguém nos queira amar.
Completamente esgotado nas datas fevereiro, ainda é possível tentar assistir à sessão especial do espetáculo, a 31 de março, no Teatro Villaret.
28 anos após estrear a primeira peça, onde continua a ir buscar inspiração?
Às vezes são reptos que me fazem, outras vezes são coisas que tenho na cabeça há muito tempo. Por exemplo, no caso de Glory Hole, havia uma imagem de um filme japonês com um nome impronunciável, que andava há 20 anos a incomodar-me. Era uma cena de muita solidão, passada num glory hole, no fim da qual um dos intervenientes punha a mão no buraco e a pessoa do outro lado via um anel nessa mão, percebendo que tinha estado a relacionar-se com o pai. Aquilo impressionou-me imenso. A forma como o anonimato levado ao extremo pode levar a situações muito difíceis de digerir.
Como é que daí passou para esta peça?
Foi com a loucura das redes sociais. Comecei a pensar e apercebi-me de que o Mundo tornou-se todo ele um grande glory hole. A pessoa olha por um buraquinho sem saber o que é ou não verdade daquilo que está do outro lado, porque vem tudo com filtros ou Photoshop. Sabemos o que é que nos dizem que está do outro lado, não o que realmente lá está. Pareceu-me chegada a hora de usar esta metáfora para mostrar que estamos todos a espreitar por glory holes, a relacionar-nos através de buracos.
É uma forma de relação muito solitária…
O glory hole é talvez a maior metáfora da solidão. Uma solidão com falta de autoestima, de alguém que, mais do que não ver, acha que não merece ser visto. Falei com muita gente que frequenta e que me disse: “Se eu for a um bar, ninguém vai olhar para mim, portanto vou a um lugar onde não seja preciso alguém olhar para mim”. Temos sempre uma tendência muito grande para olhar para estas questões com julgamento e eu acho muito mais interessante olharmos para elas com compreensão, com compaixão.
Isso reflete-se no texto da peça?
Desde o início da minha carreira que o meu maior interesse foi dar voz a quem não a tem. Nesta peça aconteceu uma coisa com duas ou três pessoas que já frequentaram lugares destes. Vieram ver os ensaios e acabaram todas em prantos, porque sentiram que já não estavam a ser julgadas por aquilo que fizeram, que isto de ganhar o palco lhes sossegava a culpa com que viviam. É que nós vivemos num mundo assim, onde se castiga e se julga.
Ainda há muito preconceito?
Não sei se é preconceito. Há julgamento. Temos uma herança judaico-cristã de julgar, julgar, julgar. E nós sabemos lá. Na história, cada personagem tem um caminho totalmente diferente, mas, no final, eu queria que as pessoas compreendessem aquelas vidas e não que as julgassem. Há pessoas que não têm fugas, e este espetáculo é muito sobre pessoas que não têm fugas.
Qual a função do Teatro ao trazer temas como este para cima de um palco?
Sempre achei que tinha de trazer para o palco as franjas da sociedade, aquilo que nós fingimos que não existe, mas existe. A hipocrisia enerva-me muito. Se há tantos lugares assim em Lisboa e no Porto é porque muita gente lá vai, mas fazemos de conta que não. Vivemos em ilhas e achamos que o mundo é aquilo. Mas há mais mundos, há muitos mundos. Para esta peça, falei com algumas prostitutas que me contaram coisas que vão muito além de qualquer imaginação que nós possamos ter. Portanto, a minha questão é sempre dar voz e nunca julgar o que é que leva as pessoas a caminharem numa direção, porque eu não estive nos sapatos delas, não passei o que elas passaram.
Qual a grande diferença entre escrever peças de teatro e poemas para canções?
Sinto que os anjos acordam com a música e os demónios com o teatro. Talvez porque na música há menos possibilidade de aprofundar os temas. Algumas pessoas que veem as minhas peças dizem que é impossível terem sido escritas pela mesma pessoa que escreveu canções tão luminosas como as que eu escrevi. Mas a verdade é que nós todos estamos cheios de anjos e de demónios.
Glory Hole é o espetáculo mais “demoníaco” que escreveu até hoje?
Acho que sim, porém os demónios acordam mais para lançar a coisa. Depois olho para todos eles com tanta compaixão que, no final, os anjos descem.
Nesta peça, podemos falar de uma procura de si mesmo, ou não faz sentido?
O Tolstói dizia: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. De certa forma, estamos sempre a falar de nós. Se eu não sentisse, se não compreendesse, pelo menos, a solidão destas pessoas, não poderia ter escrito este texto, que é seguramente o que me vai trazer mais dissabores sociais. E, portanto, uma pessoa tem que respirar fundo e perceber que um artista está ao serviço de uma coisa muito maior, não pode estar preso pelas morais que o circundam, tem que ir atrás daquilo que considera ser um bem maior. Neste caso, a abolição do julgamento. Além disso, cada vez mais tento, no meu teatro, ir para um lugar de falar de dentro de nós.
Porque somos todos mais parecidos por dentro do que aquilo que imaginamos?
Porque entendemos-nos todos muito melhor cá dentro do que fora. É muito mais fácil entendermo-nos se compreendermos por dentro os outros. Para mim, a grande surpresa desta peça foi que, tendo um tema difícil e um texto duríssimo, vai estrear com todos os dias esgotados e muita gente em lista de espera.
É impressionante, de facto. No ano passado, referiu que era preciso “parar com esta lógica de programador”, com peças em cena três ou quatro dias, algo que acontece agora com Glory Hole. É difícil ir contra esta lógica?
É muito difícil. Se uma pessoa dissesse: “não está a ter adesão”, mas não. Então os bilhetes venderam-se que nem água e não temos para onde ir a seguir? Mesmo do ponto de vista capitalista, se há um produto e um público que o quer, é muito estranho não se poder fazer esse público encontrar o produto. Quando eu comecei, o objetivo era criar novos públicos, chegar as gerações mais jovens, mas, agora, com esta história dos quatro dias, nunca mais vamos criar novos públicos, porque vão sempre as mesmas pessoas. A coisa do boca à boca, que funciona imenso no teatro, em quatro dias não funciona, acabou. As peças têm estar um tempo em cena para que as pessoas comecem a falar delas, tornanda-as naquilo a que hoje em dia chamaríamos virais.
Perante todas estas dificuldades, o que o faz querer continuar?
O facto de ainda acreditar que, estando todos os contrapoderes, como é o caso do jornalismo, a perder poder, devido a questões económicas e políticas, a arte ter de reclamar para si esse lugar. Um lugar para falar do que não se fala. O meu teatro sempre foi isso.