Há também uma perspetiva que toca outros temas, que não são necessariamente espaciais: olhamos para uma sociedade distante sem perceber o seu contexto histórico, social e político.
Limitamo-nos à curiosidade voyeur. Olhamos para o exotismo do outro que, na verdade, só é exótico devido a tudo aquilo que ignoramos sobre ele. Também aqui, na História, vamos de elevador até ao presente, aterramos à distância, sem perceber a trajetória histórica dessa sociedade. Ítaca é o destino e não sabemos usufruir de outras perspetivas ou percursos.
Árabes, Quechua ou Kaxinawá estão distantes, mais pela História do que pela geografia. Aterramos no seu território sem um caminho, sem percorrermos o seu contexto, apenas armados da moral com que fomos educados. E essa moral muitas vezes é a sua fatalidade.
Cada vez mais pensamos assim, ignorando os passos que damos, apenas pensando numa recompensa imediata.
Mas, mais grave, é acharmos que Ítaca é um espaço impossível e desistimos de a procurar. Nesse caso, remetemos os nossos destinos para o espaço da utopia, para a impossibilidade, e achamos que nada vale a pena, exceto ter cento e tais canais de televisão e um sofá. Desistimos do percurso. Sobretudo porque este não nos leva a lado nenhum.
A noção de destino cria espessura no que fazemos e desejamos, uma solidez, uma casa, um templo, um poema. É para lá que nos dirigimos, temos um farol. Independentemente de Ítaca ser um percurso, deve também ser um destino, um ideal. Para os nómadas é um retorno, há sempre uma Ítaca. Para nós, que passámos a morar nos nossos sofás, parece que não precisamos mais do que um novo post no Facebook, uma nova petição.
Os destinos tornam-se corridas matinais, iogurtes com bifidus ativos, bagas goji, bicicletas com design e reciclagem de papel.
A noção de espaço é também uma noção de moralidade. Se, num comboio quase vazio, me sentar ao lado de uma pessoa, parece uma invasão do seu espaço. Se, por outro lado, o comboio estiver a abarrotar de pessoas, posso estar encostado a alguém, numa proximidade que jamais teria com melhores amigos, sem qualquer problema de nenhum tipo, social ou moral.
A noção de espaço é tão necessária para a compreensão do outro quanto falar a sua língua. Não adianta falar servo-croata sem perceber o seu território mais elementar. Por outro lado, noutros tempos, o viajante era algo raro. Era as notícias, era o território trazido a um café, era um espaço geográfico que caminhava e falava.
Era a cultura, uma espécie de biblioteca. Mas, mais importante do que isso, era evolução (nem sempre feita da melhor maneira). O estrangeiro era a doença que infetava a sociedade com algo novo, que a matava ou a fazia crescer, seja através de uma ideia ou de uma guerra, era a construção de uma identidade ou a anulação da mesma.
Os ratos em cativeiro, se lhes derem um espaço demasiado reduzido, começam a ter comportamentos que facilmente identificamos como os mais triviais males sociais: roubo, violação, assassinato, etc. Esta falta de espaço, teórico ou físico, será talvez a explicação mais evidente para a dificuldade em criar uma sociedade harmónica.
Ao contrário do que muitas vezes imaginamos, o espaço durante uma viagem é, por vezes, reduzido e confinado a poucos metros quadrados: o compartimento do comboio, o assento do autocarro, do avião. Nesse caso, há uma dimensão humana que, por vezes, ficamos a conhecer. A falta de espaço cria relações. Numa viagem entre São Paulo e Curumbá, de muitas horas, a rapariga que estava ao meu lado perguntou-me:
– Para onde vais?
– Corumbá – mas tive a vontade de responder Ítaca. Só para ser mais preciso.