Paulo Teixeira garante que foi uma viagem que mudou a sua vida. No início deste século, concorreu a uma residência literária no estado da Bahia, no Brasil, e a surpresa começou logo na resposta. Foi rápida e positiva.
Quando deu por si já estava mergulhado numa paisagem deslumbrante, num pequeno paraíso que se renovava todos os dias. Ficou e voltou, tantas vezes que acabou por decidir aí viver, durante uma temporada longa, que durou uma década. Ao todo, tem 23 anos de contacto regular com a cidade, apenas interrompido durante a Pandemia.
Mas Paulo Teixeira não foi um turista deslumbrado pela festa de Salvador. Com as amizades que foi criando, de uma forma improvável para qualquer país europeu, tornou-se um verdadeiro baiano, conhecendo os recantos mais inesperados.
Teve, por isso, acesso à verdadeira festa, a espontânea e a de duração imprevista, e acima de tudo ao rebuliço da multidão, com o seu linguajar inventivo. Foi tudo isso, ao jeito do romance modernista americano do início do século XX, como Manhattan Transfer, de John dos Passos, que quis captar em Não Digas o que a Baiana Tem, a sua estreia no romance, depois de um longo e consagrado percurso poético, iniciado em 1985.
Nascido em 1962, Paulo Teixeira tem a sua poesia reunida em O Último Poeta Romano, lançada em 2020, tendo publicado entretanto outros dois volumes de poemas: A Comoção do Mundo e A Boda dos Tempos.
Depois de décadas de poesia, um romance. Projeto antigo ou uma vontade recente?
Tive, desde cedo, a ideia de escrever um romance. Fiz uma primeira tentativa, aos 20 anos, que ficou na gaveta. Não sei se foi por ter tido algum reconhecimento como poeta, se foram as rotinas da minha vida profissional a tornar mais difícil essa aposta. Porque, de facto, a escrita do romance exige uma continuidade, dia após dia, para que não se perca o fluxo, o encadeamento das falas e dos episódios. Enquanto que o rascunho de um poema pode muito bem ser escrito numa tarde.

Teve agora oportunidade para essa escrita mais continuada ou foi a narrativa que a impôs, sem lhe dar alternativa?
Se a ideia de escrever um romance é antiga, a de escrever Não Digas o que a Baiana Tem não deixa de o ser também. Foi ainda em Salvador da Bahia, alguns anos depois de lá ter ido pela primeira vez, que a ideia ganhou corpo. Tudo começou com uma residência literária, que mudou o horizonte das minhas viagens (até à altura viajava sobretudo na Europa), e culminou comigo a viver na cidade durante 10 anos. É quando me instalo lá e já conheço muito bem a realidade, fruto das muitas amizades que fiz, que surge a vontade de reproduzir num romance aqueles diálogos e aquelas festas que, acredito, são completamente desconhecidas dos leitores portugueses.
Era uma realidade demasiado sedutora para a literatura ficar à margem?
Era sobretudo um enorme desafio, porque não tinha lido nenhum romance que fixasse essa realidade. Há alguns filmes que a retratam, nomeadamente Ó Paí, Ó, mas mesmo aí não me lembro de aparecer a festa de rua, a que não é a canónica, como a Lavagem do Bonfim ou a de Iemanjá, que fazem parte do calendário litúrgico. Estou a falar da festa espontânea com som de carros.
A poesia não seria o meio adequado para captar essas festas?
Na minha reunião de poemas, O Último Poeta Romano, incluí, como inédito, um livro de poemas brasileiros, Calepino. Alguns são retratos a cru da realidade de Salvador. Um sobre a praia, a partir do que se vê da balaustrada do Porto da Barra, com o movimento permanente dos ambulantes e os seus pregões. E há outro poema sobre a Festa de Santa Bárbara, no qual a violência irrompe, com um rapaz que aparece morto no final. É possível captar esta realidade em poesia, em poemas mais extensos e descritivos. Mas era um romance que eu queria escrever.
Iniciou-o ainda em Salvador?
Fui recolhendo material ao longo dos meses e dos anos. A partir de certa altura tinha um acervo que me permitia trabalhar.
Fez uma recolha como se fosse um antropólogo?
No prólogo do romance, o narrador diz que Isabel, a personagem principal, não queria ser uma antropóloga. Mas claro que foi preciso ir além da Salvador dos turistas. Para escrever um romance sobre aquela realidade é preciso ir muito mais longe, o que leva muito tempo. Não é numa visita ou em três semanas que se fica a conhecer Salvador. Desde logo porque é preciso ultrapassar o medo, é uma cidade perigosa, tem de se perceber onde se pode pôr o pé e temos de ser aceites. É necessário possuir amigos e amigas que vão connosco ou esperam por nós. A partir desse momento estamos seguros, podemos participar e assistir a tudo. A mim, levou-me anos.
Se a Salvador do turista já é exuberante, a que descreve neste livro é muito mais….
Sim, sim. São momentos de grande intensidade. Porque a violência ronda e nunca se sabe bem o que vai acontecer. O risco faz parte da experiência. Em determinado momento do romance fala-se em adrenalina: a Isabel procura momentos em que a possa libertar. São de facto momentos únicos, também por serem breves. Estas festas de rua começam e podem ser interrompidas pela polícia ou por um tiroteio. Também há as que se prolongam inesperadamente, mas como dá a entender o narrador: “É melhor não ficar para o último autocarro da noite…”
A linguagem também foi determinante para a escrita deste romance? Ela também é uma festa…
Um dos propósitos iniciais era justamente dar a conhecer essa riqueza e criatividade da linguagem popular. O vernáculo, a gíria, a capacidade natural do baiano de produzir metáforas originais. Neste romance, o ato da fala situa-se no centro da própria narrativa. Foi sem dúvida um ponto de partida, eu queria reproduzir a maneira como os jovens falavam e o papel que a metáfora aí desempenha, porque eles são grandes criadores de imagens.
Às vezes, até parece que estamos perante uma outra língua.
No momento de escolher o seu destino de expatriação, a Isabel, como nos conta o narrador [risos], escolheu uma cidade em que desconhecesse pelo menos um terço dos vocábulos que a população fala na rua. Procurei que o leitor passasse por essa experiência de fricção linguística, deparando-se com palavras que não conhece. Depois de as ler muitas vezes pode descobrir o sentido, ou talvez não. Mas isso faz parte da experiência de Salvador. Eu já domino esse vocabulário, poderia perfeitamente escrever um conto em baianês [risos]. É uma gíria complexa, que varia de bairro para bairro. E há muitas palavras com mais do que um sentido.
Consegue dar um exemplo?
Rango, que à partida designa comida, uma refeição, mas noutros contextos usa-se quando se está com fome. Estou com um rango… Aliás, uma alemã que conheci em Salvador dizia-me que só precisava de uma palavra para comunicar na cidade: comer. Pois com ela podia designar o ato de comer e de beber (usa-se muito a expressão “comer água”, que normalmente se refere a beber álcool), sem esquecer que comer também é aquilo que nós sabemos muito bem o que é [risos]. Com uma única palavra todas as suas necessidades estavam satisfeitas.
É um movimento poético, esse de criar imagens e metáforas, de fugir à norma?
Há uma grande capacidade imaginativa e de efabulação. Estamos perante fantasistas naturais que ficcionam permanentemente as suas vidas, criando micro-narrativas que, na Bahia, ganharam o nome de resenha. São disputas verbais, acompanhadas de bebida, que podem durar horas. A única arma é a criatividade linguística, numa permanente tentativa de superação do outro. Tudo com muito bom humor. As metáforas e as comparações são ousadas. Não se trocam elogios.
É um exemplo do idioma como um ser vivo? Não há norma que o domine?
No Brasil, sim. Ano após ano, surgem novos vocábulos, num movimento que é próprio da gíria. Também se apropriam de palavras existentes, atribuindo-lhes novos significados.
As desgarradas portuguesas são sempre mais contidas…
No romance, fala-se poucas vezes de Portugal. Mas é quase sempre apresentado como um país triste. Refere-se a melancolia de que falam os turistas. A minha opinião não é diferente [risos]. Portugal é um país mais próximo de um velório do que de uma festa. Não tem nada a ver. Também é evidente que Salvador não é todo o Brasil. Suponho que o sul do país seja muito diferente. Nem todos os brasileiros são tão divertidos e extrovertidos como os baianos.
Uma realidade tão diferente, como é a de Salvador, também pedia um romance diferente?
Não tive qualquer preocupação em ser original ou desejo de fazer experiências. Esse tempo, parece-me, de alguma maneira já passou. Quis ser fiel à realidade e à linguagem falada nas ruas. Também quis captar a velocidade a que as coisas se passam numa grande cidade brasileira, em particular o movimento caótico da multidão. Foi por isso que tentei reproduzir os pregões, as interjeições, as frases soltas, os insultos, a música dos carrinhos de café. Como se a cidade fosse, ela própria, uma personagem.
Quis ser fiel à realidade e à linguagem falada nas ruas. Também captar a velocidade a que as coisas se passam numa grande cidade brasileira, em particular o movimento caótico da multidão
Podemos dizer que este livro é uma educação sentimental da Isabel?
Sim. A Isabel representa uma jovem portuguesa, que não é pretenciosa, que é simples e discreta. Contrasta com a exuberância da mulher de Salvador, com Jamile, capaz de verbalizar as histórias mais incríveis e escabrosas. E, na verdade, ao longo da sua estadia na cidade, a Isabel passa por um período de aculturação. Até ao ponto de se tornar na Isabéu. É toda uma educação sentimental que vem acompanhada de um desdobramento da sua figura, sobretudo no modo como é vista pelos seus novos amigos. Acaba por aderir àquela realidade e por transformar a própria vida em fábula.
E como chegou à protagonista, à Isabel?
Procurei uma personagem global deste século XXI. Se o romance se passasse hoje ela seria seguramente uma nómada digital [risos]. Mas a narrativa decorre noutro tempo. Embora não seja referido diretamente, estamos no primeiro governo de Dilma Rousseff, quando a cidade teve um prefeito evangélico e estava um pouco abandonada. Nesse contexto, quis uma pessoa como as outras, não uma heroína ou anti-heroína, nem alguém que fosse porta-voz da agenda do trauma ou de qualquer ideologia dominante. Alguém quase anónimo para poder desaparecer e dar lugar à realidade envolvente. A Isabel umas vezes é protagonista, noutras figurante. Acredito que já não há heróis, no verdadeiro sentido do termo.
Essa convicção aplica-se só ao romance ou também ao nosso tempo?
Ao nosso tempo, claro. Não temos grandes modelos. Basta olhar para a política… Mas também em termos literários… Já não encontramos aquelas figuras que no século XIX se destacaram. Um Victor Hugo, por exemplo, ou um Charles Dickens. Há, sim, demasiados nomes em todos os domínios – na música, nas artes plásticas, no cinema. Hoje é muito mais difícil sobressair. Somos todos personagens secundárias.