Foi com a visita regular de jornalistas a sua casa que Paulo Gurgel Valente percebeu que a sua mãe era conhecida e lida por muitos. E com ela aprendeu a importância da palavra, a saber contar uma história e a amar os livros, independentemente do que fizesse.
Mais novo dos dois filhos de Clarice, Paulo Gurgel Valente é economista de profissão, mas a escrita sempre foi a sua paixão, que primeiro concretizou no campo da literatura infantil e mais recentemente no romance histórico.
Grande divulgador do ofício da mãe, adianta ao JL como vê o relançamento da obra de Clarice em Portugal e o fascínio que os seus romances, contos e crónicas continuam a exercer em leitores de todo o mundo.
Qual a imagem mais forte que guarda da sua mãe?
A de uma pessoa muito sensível e amorosa, ocupada com o bem-estar dos filhos.
Em Clarice, vida e literatura confundiam-se? A escrita estava sempre presente, mesmo quando não estava a escrever?
Certamente, se observarmos a evolução de seus 85 contos, podemos verificar que as personagens, geralmente femininas, vão evoluindo de jovens até mulheres maduras.
E podemos procurar nos seus livros pistas para entender a sua vida? Biografia e escrita também de misturam?
Não é difícil entender sua vida, inclusive há muitas biografias de qualidade, com aspetos diferentes sendo apresentados. É impossível que as experiências pessoais não estejam refletidas na escrita. Mas é claro que nem tudo é ipsis literis. Por exemplo, Clarice como qualquer dona de casa no Rio de Janeiro, tinha de lidar com o problema das baratas, como no conto ficcional A Quinta História. É óbvio que também não provou da massa da barata. A esse respeito há uma história curiosa. Nelson Rodrigues, talvez o maior teatrólogo brasileiro, escrevia colunas diárias sobre futebol, a vida e os fait divers; numa destas colunas escreveu que Clarice comia baratas; Clarice teve de pedir ao amigo comum, Otto Lara Resende, que convencesse Nelson de parar com estas colocações.
A obra de Clarice Lispector continua a cativar sucessivas gerações de leitores e de escritores. Como vê este renovado interesse? E o que lhe parece ser a fonte de um fascínio tão grande?
Para mim a obra de arte existe a partir do momento em que se descobre que outra pessoa tem os mesmos sentimentos que nós temos e nem sabíamos nos expressar. Isto é o que, em minha opinião, motiva as pessoas. E também, como muitos dizem, a obra é tão atual que parece que foi escrita na noite anterior à leitura.
Apesar de ser mais conhecida pelos romances, Clarice escreveu uma grande diversidade de textos, incluindo contos e crónicas. Em que medida estes escritos são importantes para o retrato completo da escritora?
Inicialmente, Clarice foi conhecida pela publicação de seu romance Perto do Coração Selvagem, em 1943, que causou grande alvoroço favorável na receção crítica; os contos começaram a ser publicados na década de 1950 em revistas e trouxeram grande notoriedade, até hoje alguns críticos dizem que é melhor contista do que romancista, mas não é a maioria. Mas as crónicas que publicou no Jornal do Brasil aos sábados, de 1967 a 1973, é que a tornaram de fato bem mais popular, pois o Jornal do Brasil tinha sempre colunistas bem notórios e a edição de sábado era esperada por muitos leitores para ler Clarice. O retrato completo é lendo a obra toda, mas há uma seleção de crónicas todas na primeira pessoa do singular que são autobiográficas, editada no Brasil com o título Aprendendo a Viver, espero ver também esta edição em Portugal em breve.
Qual a sua obra preferida de Clarice?
Não tenho uma preferida, mas gosto especialmente dos contos mais tardios e modernos em Onde Estivestes de Noite, A legião estrangeira, os contos de Laços de Família, A Hora da Estrela e A paixão segundo GH, além das crónicas e das cartas: pronto, acabei citando praticamente tudo.
Em Portugal, a obra de Clarice vai ser relançada pela Companhia das Letras. Como valoriza esta presença noutro território da língua portuguesa?
Tive uma grande identificação com a maravilhosa equipe da Companhia das Letras Portugal, seu entusiasmo, as edições modernas, com lindas capas, textos de posfácio e a seleção de especialistas portugueses na obra, com textos originais e com visões que eu não conhecia. Assim tenho a certeza de que os leitores portugueses terão muitas alegrias em perceber a obra bem tratada e bem difundida.
E qual o estado das traduções? Clarice continua a ser procurados por outros universos linguísticos?
São mais de 40 países diversos, em todas as línguas mais conhecidas da Europa Ocidental mais a Europa do Leste, Oriente Médio e Asia, além da America Latina; assim temos galego, catalão, polonês, finlandês, árabe, hebraico, coreano, japonês, chinês, incontável variedade.
Podemos esperar, nos próximos tempos, a revelação de material inédito?
Eu espero publicar no futuro as traduções teatrais que fez, de Ibsen a Garcia Lorca, passando por Lilian Helman e Sotoba Komach. A maioria ela fazia em conjunto com a Tati de Moraes, primeira mulher do Vinicius, e é muito interessante ver os manuscritos com as correções, em que Clarice colocava as falas coloquiais como devem ser no teatro na versão brasileira; ela tinha muitos amigos no teatro e vivia bastante no meio teatral
De que forma a sua mãe influenciou o seu percurso literário no campo da literatura infantil?
Na verdade, são estilos bem diferentes, mas o exemplo foi que se pode escrever um livro. Eu tenho além dos três livros infantis, tenho cinco livros profissionais de economia e dois de ficção histórica, A morte do embaixador russo, publicado em 2023, e Heróis por acaso, sobre espionagem no Brasil durante a II Guerra Mundial e problemas do holocausto. Este sairá em abril de 2025 em comemoração aos 80 anos do final da guerra na frente europeia, espero que em breve um editor de Portugal se interesse.