Primeira sensação, teria uns dois anos: deixaram-me cair numa água e depois tiraram-me. Imagem recorrente durante toda a infância. E depois da infância, sob outras formas…
Depois do ventre primeira escuta silenciosa houve uma casa e depois da casa uma rua e só depois o jardim das livres delícias: a quinta do avô. A palavra aberta da Natureza. O avô a mostrar-me as plantas e os bichos, os da terra e os do ar, como se fossem da família. Eram. As coisas e os seus nomes, percursos, essências: e também as afáveis, as éticas, as poéticas…
Veio depois o mar, sob o olhar da mãe, mas aqui o animal era imenso e ainda não tinha ouvido nem palavras para ele…
Foram três as primeiras escutas humanas: o pai, que só falava por frases curtas e provérbios, coisas enigmáticas (havia que decifrar, e isso entrou depois no meu trabalho); a mãe, que palrava dia e noite, desenvolvendo as falas do pai (o que se tornou referência de fundo na minha escrita: uma idéia poética pode resumir-se num breve poema ou alargar-se num romance; lembro as 2 palavras do meu poema «O corpo?»: «Pátria / sensível» (1980) e a seguir as 300 páginas do romance Pátria Sensível (1983); por fim o convívio com António Aleixo, o poeta popular que todos os dias ia a minha casa, uma casa de comércio, um lugar público, com uma quadra nova onde música e conceito se casavam rigorosamente…
Entro nos dez anos, a família muda-se de Loulé para Faro para eu poder continuar a estudar, aumenta a disciplina mas também um leque infinito de descobertas: o mar e a camaradagem, as longas discussões sobre deus, a sombra das desigualdades e o amor, sempre que me acenava…
Em casa não havia muitos livros mas eu lia tudo o que mexia, muito de tudo (era o tempo da biblioteca itinerante da Gulbenkian, que se plantava num jardim onde é hoje a Biblioteca António Ramos Rosa), vício que já começara a alimentar em Loulé, na casa de umas vizinhas cultas, que me iniciaram em várias artes: davam-me a ouvir Tchaikovsky e música árabe, a ler Camilo e Camões, deliciava-me com as ilustrações dos clássicos, ensinavam-me as películas da música e do silêncio…
Adolescente fui muito marcado pelo mar, sempre conotado com o melhor que a vida nos pode dar: a leveza, a liberdade, a vivência do instante, o fragmento emocional (depois por escrito), o canto da onda volátil, os barcos à vela, o prazer do corpo, do meu e daqueles que ia desejando, amando, já sem teias nem peias, enfim, mais ou menos, que é sempre dura a aprendizagem de ser quem se é… «Um homem é o que nasce mais o que faz-se», dizia o pai…
É por esta altura que aparece o único amor constante da minha vida: um amor que era também vício e devoção, destino e íntima profissão: a escrita. Para sempre. Poderia fazer isto ou aquilo (estudar comércio ou avançar por estudos superiores) mas escrever era o que eu queria fazer; poderia trabalhar onde calhasse, e muitas coisas desde então eu fiz, mas escrever era um desígnio tão forte que nem queria perder tempo em universidades…
E assim foi: um curso comercial, uns empregos para subsistir (libertar-me dos apoios de família) mas sempre, em cada momento, escrever: coisas diversas que me ajudavam a definir um caminho. E sempre as leituras, a descoberta do Pessoa e de todos os outros, Homero e Whitman, Dante e Pavese, Virgílio e Camus, tutti quanti, à balda e afinando o gosto, as sínteses do pai e a plenitude da mãe, e fazendo ao mesmo tempo mil coisas, sempre inesperadas, no mar e no amor, na leitura e na escrita…
Por essa altura publiquei o primeiro livro (Poemas da Solidão Imperfeita, 1957), conheci o Ramos Rosa, criei os «Jograis do Meio-Dia», fizemos os «Cadernos do Meio-Dia», comecei a sentir na carne a pata fascista e parti quando começaram a recrutar mancebos para as guerras coloniais…
Esse tal primeiro livro era uma coisa inspirada que recebeu louvores do Gaspar Simões e do António e de… mas eu não queria seguir por aí e não sabia por onde seguir. Foi então (Westfield College, Londres, 1958) que descobri a poesia japonesa, o haiku, e entrei para sempre (sem desprezar outras formas) nessas ascéticas veredas, nessa música de penumbra, a pontos de hoje me publicarem frequentemente no Japão. Por cá ainda não, estou a deixar o meu Livro dos Haiku, agora longuíssimo, para depois…
Sem desprezar outras formas porque a essência da minha obra está ligada ao labirinto e à polifonia: é-me preciso dizer tudo (que sempre será pouco de pouco) de várias maneiras. E por isso me recordo desses longos dias junto ao mar em que eu «via» a tapeçaria do meu trabalho futuro: poemas & ficções & aforismos & reflexões… uns livros onde diria do amor e das lutas, do efémero e do intenso, dos acidentes, das esferas… e foi dentro desse espírito, dessa visão, que foram sendo escritos os meus primeiros livros: preenchendo a tapeçaria mental, onde muita coisa caberia. Um projecto horizontal.
Entretanto trabalhei estupidamente, amei apaixonadamente, comecei a viajar, multipliquei-me (pobre Quijote!) em coisas dos outros, e já não sei se fiz bem ou se fiz mal. Está feito. Pouco se vê. Um corpo não se vê, não se agarra. Mas ainda não está tudo amado, nem viajado, nem escrito…
Vivi lutas que acabei por dizer em poesia: são os Jardins de Guerra (1966) e depois um frágil falar de áfricas sob o nome do Vietnam, e o rol habitual: censura, polícia política, interrogatórios, proibição, ameaças…
O Maio de 68 passei-o em Nova Iorque, agitei-me na Columbia, ouvi o Bob Dylan na Village, coloriram-se as minhas clandestinidades e quando regressei a Portugal foi o descalabro: divórcio, denúncias políticas, crise de ascetismo, e lá arranjei maneira de partir para um «exílio interior» na Alemanha.
Mas antes passei por Paris, vi o rescaldo do Maio deles…
Regressei outro quatro anos depois: trazia na bagagem umas ficções (Um certo pais ao sul) e um poema «épico», a Negação da Morte (1974), mal lido até hoje, como aliás tudo o resto, mas isso é irrelevante…
Instalei-me em Lisboa e recomeçaram as lutas do corpo: o amor, a poesia, a revolução… o todo pacificado (máscaras sobrepostas) por nuvens orientais: o Zen (Nem Senhor Nem Servo e Subitamente o Silêncio), e mais tarde o Taoísmo (Na Via do Mestre: 17 anos a escreviver este livro)…
No centro de todas estas incursões uns textos em que procurei encenar a polifonia dramática: é o tempo do Labyrinthus (1981), das ficções de estilo da Pátria Sensível, do Nós, Outros (com Teresa Salema), da convocação de outras tradições, dos aforismos de Arte da Respiração, enfim, um doloroso e ao mesmo tempo feliz teatro de sombras, porque um homem não é apenas uma árvore, embora tenha muito a aprender com elas, e com todos os outros bichos de que falava o avô, lá longe na infância, sempre tão próxima…
Por este tempo, anos 80/90, de novo entrado em planícies amorosas, escrevo Intensidades e Opus Affettuoso, multiplico-me em fragmentos e viagens, publico o mínimo, entro em contacto com gente maravilhosa (Senghor, Borges, Alberti, Soderberg, Brodski, Guillevic, Juarroz, Hamburger, Sorescu, Griffin, Milosz, Luzi, Blandiana, Holappa, Adonis, Clancier, Durcan, tantos, tantos mais… ) E chegaram novas viragens, na vida e na arte: fui pai de novo, com quase 60, e de novo me senti rejuvenescer. Mas o projecto de escrita era agora vertical, a carne viva do momento que passa, o aceno do último poema no dia em que nasceu a filha, poema esse, o Livro das Quedas, que se me apresentou como último, labiríntico, enciclopédico.
Passados 10 anos estão escritas 700 páginas, mas só estou a começar, precisamente porque cada fragmento é o último…
Livre, enfim, de peias profissionais (trabalhei 37 anos num banco), escrevo.
Escrevo apenas. Coisas últimas que vou metendo em buracos que se vão definindo: o Livro das Quedas, o Livro do Desejo (ficção), o Livro dos Haiku, o Livro das Obsessões (fragmentos), o Livro do Efémero (a espuma dos dias)…
Escrevendo continuarei até ao sopro final como se cada momento fosse o último mas sabendo eu, ou algo em mim, que é o primeiro…
É duro e é assim: levanto-me todos os dias às 5 da manhã, e escrevo coisas, notícias do caos antigo, da contaminação do caos pela linguagem: é a aparição do anjo branco, um estado de graça que tanto pode durar uns minutos como longas horas. Escrevo onde calha, às escuras, no primeiro papel, em mensagem telefónica. Depois vem o anjo operário, o incansável de mim que não larga a sílaba nem o silêncio entre as palavras, esse que é capaz de trabalhar um texto durante 10 anos, no fragmento 55 das «quedas» trabalhei 20 anos…
E ainda vou lendo amando ouvindo música viajando e bebendo o meu vinho o meu arak o meu saké, ainda vou caindo e levantando-me enquanto me deixarem neste projecto de transformar o caos em canto… que leis só a do poema e a do amor, as que pedem que um homem se debruce, e escute.
Casimiro de Brito – Entre o caos e o canto
Recordamos aqui a 'autobiografia' que Casimiro de Brito escreve para o JL em 2006 (JL 934)
Mais na Visão
Parceria TIN/Público
A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites