Claúdia Lucas Chéu (CLC), autora de Mulher Sapiens e de uma longa lista de peças de teatro, de conjunto de contos e de romances, e também de poesia, Nojo (2014, prosa poética) e Trespasse (2014), o seu melhor livro de poesia é, porém, Pornographia (2016), no qual são golpeadas e destruídas as instituições duradouras da sociedade como o Amor burguês, a Família, a Política e a Religião, projetando o leitor para um universo no qual que se postula que “Não há nada mais obsceno que a civilização” (p. 74), ou seja, um niilismo à flor da pele onde “o dia antigo cheira a podre” (p. 79).
A sua escrita é uma síntese atual do movimento feminista português do século XX, desde as mulheres republicanas, que defendiam a igualdade entre os sexos, até ao livro das ‘Três Marias’
Os seus textos de teatro, Glória ou como Penélope morreu de tédio (2011), A cabeça muda (2014) e Violência – fetiche do homem bom (2014), bem como Veneno (2015), assumem os valores europeus subversivos (pós-modernos do final do século XX e princípios do XXI e a consequente destruição dos alicerces da sociedade atual, hedonista, consumista, tecnocrata, mas moralmente bem comportada (o “politicamente correto”), jogando para baixo da mesa os traumas íntimos à família, as perversões vinculadas à desigualdade social, os fantasmas da História, que CLC desmonta e evidencia. Também aqui, na dramaturgia, a sua obra opera um sentido subversivo.
Aqueles que vão morrer, seu primeiro romance transpõe para o universo narrativo o mundo representado nos restantes géneros literários. O título é sintomático: a saudação de despedida dos gladiadores na arena romana, sendo que, no romance, “os que vão morrer” residem num hospital psiquiátrico na Alemanha e sofrem de doenças mentais, como que condensam e respiram os miasmas pútridos da nossa civilização, dela excluídos como novos gáfaros medievais.
O universo da loucura é explorado pela autora, não de um modo exterior, buscando justificações racionais ou psiquiátricas, mas segundo o sentido interno à loucura da personagem principal, Cláudia.
Já neste ano de 2024 foi editado Um quarto com vista sobre o meu quarto, conjunto volumoso de crónicas publicadas no jornal Público, título aparentemente inspirado em Um quarto que seja seu (1929), de Virginia Woolf, sobre a obra da qual, aliás, a autora já escrevera uma peça de teatro, Orlando.
São crónicas reflexivas, confessionais relativas à vida própria, à família, à educação da filha, à infância da autora na Outra Banda, às diversas relações maritais e sexuais, ao onanismo nas mulheres, às comunidades de bairro. Pelo título, percebe-se que CLC faz um conjunto de introspeções sobre a sua personalidade, a sua mente e o seu corpo, problematizando-os.
Crónicas todas elas desconcertantes, a jogar com os limites do nosso inconsciente coletivo, forçando-o, expondo algumas das nossas contradições comportamentais neste tempo de Intervalo, quando o que se pratica já não convence e o que se deseja ainda não veio.
Escritas num estilo direto, uma escrita crua, sem eufemismos ou paráfrases, que põe o dedo na ferida nos traumas que podem magoar o leitor, não habituado a ler os textos de uma mulher tão livre e independente como a autora.
É uma escrita corrosiva, o livro da CLC leva ácido, pode queimar as mãos do leitor, sobretudo da leitora caso esta não esteja de mente aberta. São textos de uma mulher que não deve nada a ninguém.
E é justamente nestas problematizações que o leitor descobre que a escrita de CLC é uma síntese atual do movimento feminista português do século XX, uma síntese aberta, desde as mulheres republicanas, que defendiam a igualdade entre os sexos, até ao livro das “Três Marias”, Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, Novas Cartas Portuguesas, publicado em 1972 e a consagração na Constituição de 1976 da igualdade reclamada há cem anos.
Porém, a igualdade legal custa a fazer-se vida nas relações sociais, e a mulher continua numa posição fragilizada perante o omnipotente domínio masculino.
É justamente neste vazio social, no qual, por inércia comportamental, as ideologias conservadoras de uma família como prisão social (Florbela Espanca) e uma mulher como “dona de casa” (“doméstica”, como “domésticos” são os aninais de companhia) ganham terreno, que as crónicas de Claúdia Lucas Chéu evidenciam a sua importância, rompendo preconceitos e estereótipos e afirmando-se como a voz feminina de uma geração já do século XXI