Aos 37 anos ele entrou na grande área da poesia e resolveu rematar em direção à estreita baliza, da qualidade. O golo tem um título — «Vértice da Água» — e o jogador um nome famoso: Artur Jorge.
Em literatura (como no futebol) há os que disseram que ele estava «off-side» e que o golo era–nulo. Outros aplaudiram-no e gabaram-lhe a técnica do verso e a beleza da linguagem. Ele, sério, encolhe os ombros e faz saber ao JL que «o facto de ter sido um jogador de futebol com certa fama pode ajudar a vender o livro, mas penso que as pessoas poderão fazer mais tarde um juízo de valor sobre o que leram e logo veem. O que acaba por contar é a qualidade e essa está para além do ‘marketing’».
Ler poesia é um hábito velho: «leio muito mais do que ficção, porque a p oesia permite uma leitura parcelar, pontual, e sempre renovada, porque a poesia é isso também, podermos ler as mesmas coisas de maneiras diferentes. Um dos seus méritos é o não estar completamente destruída, digamos, clarificada; há sempre possibilidade de ler o que já se leu de mil maneiras diversas».
«Vértice da Água» é um livro por onde passam, em páginas soltas, os poetas de S. Francisco e da «beat generation», o nome de Apollinaire e, com marcante influência em alguns dos poemas finais, a imponente geração de 27. Artur Jorge acusa o toque mas não sabe «se se pode falar em termos de influência, porque somos influenciados por tudo e por nada, especialmente quando se lê poesia há tanto tempo».
Dos portugueses, ele cita «Herberto Helder, Fernando Pessoa, Fernando Guimarães, tanta gente…» Parco nas palavras, é-lhe difícil falar de si mesmo, no entanto, concede ter tido muito trabalho com o seu livro, cujos poemas fez e refez até lhe parecerem perfeitos.
«Perfecionista? Bem… eu acho que as coisas devem ser bem feitas, senão rasgam-se ou ficam na gaveta. Até conseguir o que pretendia levei multo tempo, mas depois chega uma altura que se intui que as coisas estão acabadas e não há volta a dar-lhe! Naquele livro não há nada a mudar.» Água e corpo
CORPO E ÁGUA
O núcleo essencial dos versos de Artur Jorge repousa em dois substantivos: água e corpo: «Penso que há um tema que é central e que não é por acaso que aparece no título: Agua. A água tem a ver comigo. Nascemos da água, vivemos dela, a água é um elemento que existe em nós. Somos 60 por cento de água!»
Fascina-o a metamorfose, a constante possibilidade de transformação física da água, «a água que ferve, a água que é gelo…» Na sua poesia a água «arde, corre, ora é límpida ora turva», num processo de mutação que tem a ver com o homem: «Nós estamos dentro disso tudo.» Com uma casa no litoral, ali tão perto das mansas praias do Algarve, ele recusa que a sua poesia seja influenciada pelo mar. «A água de que falo não é bem a água do mar, é a água toda, só isso.»
Depois há o corpo,que foi durante anos o seu instrumento de trabalho; o corpo que se esgota nas tardes de domingo, que se agita nos relvados; que aceita a dura ginástica da vitória e o desgaste da derrota. O corpo atlético do jogador de futebol. Artur Jorge admite «que o corpo está muito presente no livro, mas não o corpo que dá cabeçadas na bola». Referências diretas ao desporto, encontram-se apenas num poema que fala, timidamente,,de «um joelho de água». Mais nada.
Há sim o «corpo fendido», o «corpo que arde», o «corpo ao ser tocado», o «corpo seco», o «corpo em chamas». O «corpo só». O corpo obstinado. Hoje, Artur Jorge é treinador de uma equipa de futebol, é um disciplinador de corpos. Nostalgia dos tempos em que era o seu corpo de desportista dotado, o centro das atenções e dos olhares das multidões ele não tem: «Foi um tempo bom mas gosto de estar aqui e agora, a fazer o que estou a fazer, gosto mais de mim agora.» «O dia a dia é mais rico e penso que me entendo melhor; se não faço as coisas todas que gosto de fazer, pelo menos sei melhor o que não gosto de fazer. Vivo mais o dia que passa, as pequenas coisas…»
A HERESIA
Não será a poesia — talvez — uma busca do sucesso, num outro campo infinitamente mais amplo do que o de um estádio? E não será esse um desafio maior do que um jogo de futebol entre equipas de luxo? No meio literário, as regras são outras e os «outsiders» não são bem recebidos pelo «resto da equipa». Fala o novel poeta: «Penso que é capaz de soar um bocado a heresia, visto que sou um sujeito que aparente-mente nada tem a ver com as coisas da ‘intelligentsia’, mas isso não é problema da poesia ou da literatura, é de toda a atividade.
Há sempre alguém que vem de fora, que não estava no programa e que pode fazer `comichões’. Isso a mim não me incomoda nada!» Por isso ele tenciona continuar. E também porque «a poesia é uma coisa que faço regularmente e seria improvável que não continuasse a escrever». E como é que se começa? «Não sei, fui escrevendo coisas e dei comigo a não escrever mal, a sentir necessidade de criar, não tanto para comunicar, mas para exprimir algumas ideias que me passavam pela cabeça, porque a poesia é uma forma ótima de o fazer, é um género literário que não está gasto e que aceita todas as pesquisas, todas as formas possíveis.» A prosa não o atrai. O Artur Jorge poeta surpreendeu muita gente.
Ele fala de «reações simpáticas e encorajadoras dos amigos, ainda que viciadas por uma componente afetiva sem o distanciamento necessário».
UMA TAREFA CUMPRIDA
«Vértice da Água» contem poemas organizados, página a página, em obediência a um critério cronológico. Os primeiros versos refletir um certo empirismo de linguagem, superado a partir da segunda metade do livro. O autor confessa: «O livro começa de uma forma e acaba de outra, são dois blocos diferenciados, demarcados no tempo, visto que os primeiros poemas são mais antigos.»
Tanto uns como outros passaram o crivo da reformulação, da procura da forma, do sentido, do verbo, numa construção laboriosa do poema. «Tarefa comprida, permanentemente aumentada, descascada, até que o poema surge, pronto, e às vezes tão longe da ideia inicial!» Se é fácil ou difícil este ato de criação ele não sabe, mas assenta ideias quanto a um ponto: «Uma palavra pode mudar todo um poema e ele passa a ser outro; o p oema, em si, não tem nada a ver com a inspiração, não é produto de um momento de iluminação.» A poesia torna-se, assim, «um esforço físico». A ginástica sobre o papel, correndo atrás da palavra, ou a prova acabada de como o jogo ainda não acabou para o jogador Artur Jorge.