José Cutileiro (JC) publicou dois livros de poemas em 1959 e 1961, Amor Burguês e Versos da Mão Esquerda. Vieram a lume essas duas recolhas de versos em prestigiadas coleções da época, a “Poesia e Verdade”, da Guimarães Editores , e a “Círculo de Poesia”, da Moraes, o que significa que o autor, apesar de estreante, na faixa etária dos 20, era já encarado como seguro senhor do seu ofício. Tais datas coincidiam com o início e o termo de publicação de uma revista, Almanaque, a cujo conselho de redação JC pertenceu. Alguns anos depois, José Cardoso Pires, que era o chefe de redação, numa síntese do programa da revista, diria: “O programa era simples: ridicularizar os provincianismos culturais, cosmopolizados ou não, sacudir os bonzos contentes e demonstrar que a austeridade é a capa do medo e da ausência de imaginação”. Um ano antes do aparecimento de Almanaque, o mesmo Cardoso Pires pusera na boca de uma personagem de O Anjo Ancorado as seguintes palavras, que resumiam exemplarmente a diferença entre a esquerda de 45, que “tinha o romantismo das certezas”, e a que veio depois, que tinha “o realismo da dúvida”, assistindo e interrogando-se.
A intelligentsia reunida em Almanaque representava exatamente essa esquerda desencantada, cética, que, em plena Guerra Fria, assistira ao desabar de esperanças utópicas, e se opunha ao espírito tacanho do salazarismo com a ironia e a desenvoltura libertina de exemplos que lhe vinham de lugares de mais livre respiração. Em “As educações burguesas”, do livro de 1959, JC interroga-se sobre as razões por que “nenhum português escreveu um livro perverso – um livro verdadeiramente perverso, sadio como Les Liaisons Dangereuses?” e apresenta alguns consagrados do cânone literário português como Sá-Carneiro, Pessoa ou Gil Vicente, enquanto vítimas das “doce educações burguesas, idealistas e mistificadoras”, quiçá, pelo que seria a sua tendência para o autocomprazimento na dor e na melancolia.
Espírito cosmopolita, não hesita em incluir no mesmo volume um poema com o título em francês, “Ma petite existence”, em que convoca dois autores que decisivamente contribuíram para a definição da modernidade poética, Verlaine e Rimbaud, transcrevendo inclusive, no original, dois famosos versos da “Chanson de la plus haute tour”, do segundo. De outras vezes mostra-se sensível ao ludismo e sem-cerimónia de alguns modernistas brasileiros. O livro de estreia é antecedido de três epígrafes, uma das quais da novela de Thomas Mann Tonio Kröger, que ajuda a entender o título escolhido para o volume: “Porque se há qualquer coisa capaz de fazer de um literato um poeta, é este meu amor burguês pelo humano, pelo vivo, pelo banal”. Tal como o protagonista da novela de Mann, que se debate enquanto poeta “entre dois mundos”, também nos textos do seu primeiro livro Cutileiro se deixa antever como ser contraditório, cindido entre a nostalgia “pelo humano, pelo vivo e pelo banal” e as exigências da arte que trabalha, muito longe, contudo, de outras estéticas dominadas pela excecionalidade do artista.
Uma outra das epígrafes de O Amor Burguês, de Pascal, para quem “rien n’est simple de ce qui s’offre à l’âme”, dá conta da largueza dos pontos de vista do poeta português, que inequivocamente recusa o simplismo do branco e do preto, e que o leva a incluir no volume tanto uma “Homenagem a Jorge Vieira”, autor, como se sabe, de uma maqueta premiada, no princípio dos anos 50, num concurso internacional do Monumento ao Preso Político Desconhecido, como um lamento pela condenação à morte de Robert Brasillach.
No livro de 1961, há um nítido predomínio das formas regulares, que em nada diminuem o apego do poeta à tradição modernista. Versos da Mão Esquerda abre, aliás, com um poema epónimo do volume, em que se nota o contributo trazido à poesia portuguesa pela leitura de João Cabral de Melo Neto, o qual se traduz pela abertura a novos modos de lidar com o verso e com a velha oposição poético/ prosaico. O poema assume-se como saudação, não a uma pessoa, mas a uma parte do corpo, a mão esquerda: “Por isso a saúdo aqui/ Por essa sua coragem/ Lhe presto, neste momento,/ A mais rendida homenagem.// Mas porque sei que sem ela,/ Bem melhor vida teria/ Apesar de a estimar tanto/ Talvez a adextre algum dia”.
Percebe-se a ironia que preside ao desenvolvimento explicativo, como que silogístico, do poema, e por aí claramente se afasta ele do pendor para a seriedade de João Cabral. Ao poema de abertura, segue-se um dos mais citados poemas do autor, “Os medos”, de explícita homenagem ao quinhentista António Ferreira: “A medo guardo confissão, segredo,/ Dúvida, fé. A medo. A medo tudo./ Que já me querem cego, surdo e mudo”. Sintomaticamente o poema é dedicado ao seu amigo O’Neill, autor do mais conhecido texto sobre o tema, “Poema pouco original do medo”.
Outro dos mais citados poemas de Cutileiro é “Lembrança da égua velha”, porventura pela identificação do leitor com o que o sujeito sente relativamente à necessidade de manter viva a memória de um animal que amou. O que confere pathos ao poema e leva à clara adesão do leitor é, sem dúvida, a ternura com que o poeta fala da “velha égua” e, ao mesmo tempo, o realismo da observação, sem cedência a quaisquer sentimentalidades, e tudo servido por um ritmo que põe em evidência a força renovadora da velha redondilha.
Surpreendentemente, José Cutileiro não volta a publicar livros de poesia com a sua assinatura. Aceita, contudo, figurar em 1965 na antologia Poesia Portuguesa do Pós-Guerra 1945-1965, organizado por Afonso Cautela e Serafim Ferreira, logo apreendida pela Pide. Entretanto, depois de cursar, em Lisboa, Medicina e Arquitetura, envereda pelos estudos de antropologia social, em que se doutorou na Universidade de Oxford, com a tese A Portuguese Rural Society, dada à estampa em 1971, e mais tarde traduzida em Português com o título Ricos e Pobres no Alentejo. Na sequência dessa especialização, virá a ensinar na London School of Economics.
Em 1974, com a Revolução de Abril, dá início a uma brilhante carreira diplomática, não esquecendo, no entanto, o fundo gosto pela escrita, que fará derivar para a prosa, em textos de índole diversa, tendo recentemente saído o seu último livro, Inventário – Desabafos e Divagações de um Céptico. Nos seus escritos há com frequência um assomo de poesia, que, a bem dizer, nunca se apagou. Pensamos nós que se imporia a publicação de uma antologia dos poemas dos seus dois livros, acrescidos de dispersos* e eventuais inéditos, por ser indispensável a presença da sua voz singular no período riquíssimo da poesia portuguesa que é o da transição da década de 50 para a de 60. J
NR Este último livro, Inventário…, destaque da “Estante” do último JL, abre com um desses poemas dispersos, “Depois da Revolução” (publicado, em 1977, no Diário de Notícias), sete quadras, de que se reproduz a primeira: “Que saberão de nós os que nos virem/ Nas gravuras futuras, nos retrato antigos,/ Quando o tempo tiver confundido as razões/ E, em vez de diferentes, sermos todos parecidos?”.