Um “neorrealista com sândalo e canela”, como o definiu em título Urbano Tavares Rodrigues, num testemunho escrito, após a sua morte, em 2006, para o JL. “Na sua extrema e serena discrição, na sua esmerada elegância, sem se pôr em bicos dos pés, sem pisar ninguém, Orlando da Costa (OC) foi um dos grandes escritores de língua portuguesa da primeira metade do século XX”, fazia notar o escritor e companheiro de muitas andanças literárias e muitos combates políticos. Um “aristocrata intelectual”, segundo outro amigo, dos tempos da faculdade até ao fim, também camarada na luta antifascista, Vasco Vieira de Almeida, que igualmente o evocou nas páginas do JL: “Soube sempre estar com os oprimidos e na luta contra a tirania, com a simplicidade de uma obrigação óbvia, como cidadão e como escritor”.
Cidadania e literatura são traços fortes em OC, poeta, ficcionista e dramaturgo que este ano completaria 90 anos. Quem o conheceu, facilmente acrescenta ao perfil traços mais finos, mas de igual modo marcantes. Um deles a “generosidade”, outro o dom de “conversador nato”, o estilo de bon vivant, como realçava Rodrigues da Silva (RS) num perfil, nestas colunas, a que deu o nome “Um Homem de Afetos” – em 2000, na altura em que publicou o romance O Último Olhar de Manú Miranda e lhe foi dedicada, no Museu do Neo-Realismo, uma mostra documental para assinalar meio século de literatura. Chamava-se, a mostra, Os Olhos sem Fronteira, tomando de empréstimo o título do seu segundo livro de poemas. E bem poderia ser uma definição do próprio escritor, como então escreveu RS: “Porque, sobre o bigodão branco de neve do seu rosto indiano, lá estão os grandes olhos dele, fitando-nos sempre (olhos nos olhos – dir-se-ia)… sem fronteiras”. Uma imagem “inapagável”, garantia por seu lado Urbano, acentuando o seu perfil “tão amigo dos seus amigos, tão cuidado no traje e sóbrio em todas as circunstâncias, tão único no sorriso e até no seu bigode à marajá”.
Orlando da Costa nasceu a 2 de julho de 1929, na então Lourenço Marques, em Moçambique, mas os pais eram goeses – o pai de Margão, a mãe de Damão. Já tinha dois anos quando foi pela primeira vez a Goa, para conhecer a família. E quatro quando se mudou para a Índia, onde passou a infância e a adolescência, num universo familiar abastado, de proprietários. “Tive uma infância feliz e sem dramas, o que não me impediu de me sensibilizar pelos dramas de justiça social”, afirmava numa entrevista ao JL, em 1994. “Fui, de resto, educado numa família católica que rezava o terço em concanim e em português. Em concanim para os criados, em português entre nós”.
Fez o ensino primário e secundário nesse território indiano, então sob domínio português, e demandaria Lisboa para prosseguir estudos universitários. Chegou ao cais de Alcântara a meio de setembro de 1947 e veio para ficar. Rendeu-se ao fascínio lisboeta. “Gostei logo da cidade. E com o andar dos anos, cada vez fui gostando mais do seu rosto e perfil. Da alma da cidade, sobretudo”, confessava a propósito. “Sou um bocado notívago, devo ter uma costela boémia e Lisboa, à luz do luar ou do candeeiro, sempre me encantou”.
Na Faculdade de Letras de Lisboa, fez o curso de Histórico-Filosóficas, tendo sido colega e amigo de Augusto Abelaira, Jacinto Baptista ou Mário Pinto de Andrade. A tese de licenciatura, que concluiu em 1953, escreveu-a na prisão de Caxias, onde estava preso por razões políticas. Pertencia ao MUD Juvenil e foi preso três vezes, em 1950, 1951 e 1953. No ano seguinte, entrou para o Partido Comunista Português, de que foi militante até ao fim. Sempre marxista, nem tanto leninista, como confessava na referida entrevista. E confrontado com o facto de o seu filho António (Costa), atual primeiro-ministro, ser do Partido Socialista, garantia: “A minha única preocupação foi sempre que em minha casa se respirasse esquerda”. O seu outro filho é o jornalista Ricardo (Costa), diretor de informação da SIC.
Foi pela poesia que OC começou a sua vida literária. Em 1951, publicou A Estrada e A Voz, na coleção Cancioneiro Geral, dirigida pelo poeta Armindo Rodrigues. Seguiram-se Os Olhos sem Fronteira e Sete Odes do Canto Comum, que, apreendido pela censura, nem chegou “a ver a luz do dia”. O seu primeiro romance, O Signo da Ira, publicado na Arcádia em 1961, agora reeditado, teve sorte similar. Foi censurado, retirado do mercado e só a atribuição do Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências, por um júri constituído por Jacinto do Prado Coelho, Vitorino Nemésio e Augusto de Castro, diretor do Diário de Notícias, ligado ao regime, depois do protesto do editor, foi de novo posto à venda nas livrarias. “Em dado momento, eu tinha todos os livros proibidos”, lembrava o escritor ao JL.
Em 1979, reuniria os seus “livros de poesia da juventude” e alguns inéditos num volume intitulado Canto Civil. Nele invocava o seu “canto cívico graduado”, como expressava num verso. E noutro sobre o que escrevia: “A cartilha da guerrilha do amor e da paz”. A sua “luta pela liberdade”, sublinhou aqui Vasco Vieira de Almeida, “fazia parte da sua condição de poeta”.
Pela sua atividade política, OC foi impedido de dar aulas. Ainda lecionou no ensino particular, à noite, durante três meses, depois de acabar o curso, até ser afastado. “Graças a um amigo que me deu a mão, o Eduardo Calvet de Magalhães, comecei a fazer publicidade como copywriter. Devo até ter sido dos primeiros copywriters portugueses a viver exclusivamente disso”, recordava. “E acabei por passar a vida toda na publicidade. Tive oportunidade de viajar muito e de viver relativamente bem. Em compensação (ou em descompensação…), acabei por não ter disponibilidade para escrever”.
Talvez por isso, publicou pouco mais que uma dezena de livros. E chegou a estar décadas sem escrever um novo romance. “Escrevia uns poemas, fazia parte da Sociedade Portuguesa de Escritores, mas tempo para romances nem pensar”, afirmava ainda. “Escrever um romance exige fôlego e continuidade e isso era exatamente o que eu não tinha”. E acrescentava, noutro passo da mesma entrevista ao JL, justamente quando publicou Os Netos de Norton, um romance sobre a sua geração, 30 anos depois de Podem Chamar-me Eurídice, de 1964, uma história no meio estudantil, no Estado Novo, dedicado ao escultor José Dias coelho, seu amigo, assassinado pela Pide. “Para o escrever, reservava três dias por semana (sábado, domingo e segunda)”, lembrava. “Mas disciplina foi uma coisa que eu nunca tive muito, e é pena. O Abelaira disse uma vez que para escrever um romance é preciso 10% de talento e 90% de paciência. Por paciência, acho que ele queria dizer disciplina”.
Também experimentou o teatro. Em 1964, publicou Sem Flores nem Coroas, uma peça que se passa na última noite da soberania portuguesa em Goa, e em 1984, uma outra, A Como estão os Cravos Hoje?, que decorre num cemitério, na noite do 25 de Abril. E se mais não escreveu foi também porque teve uma vida cheia. Como confessou a Rodrigues da Silva, andou muito “biograficamente distraído”. Distraído daquilo que afinal foi “uma das suas outras razões de viver, a escrita”.
Orlando da Costa: Canto cívico graduado
Se vivo fosse, teria feito agora 90 anos. Mas morreu em janeiro de 2006, com 76, deixando uma obra significativa, como poeta e sobretudo como romancista, de par com as marcas de uma personalidade singular, humanista, defensor de ideais democráticos e progressistas, perseguido e três vezes preso durante a ditadura. Lembramos o seu perfil e, na edição impressa, acrescentamos os textos de Mário de Carvalho e Miguel Real
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