Portugal em meados do século XX, em pleno salazarismo, no contexto da Guerra Fria, ou como chegavam as notícias do mundo a um país fechado. Todos os Dias Morrem Deuses, o novo romance de António Tavares (edição D. Quixote, 172 pp), abre-nos um olhar retroativo no tempo histórico, ao mesmo tempo que faz uma retrospetiva da existência humana para falar da ruralidade ou da velhice. Porque é nesse “entrosamento” que gosta de tecer a sua ficção.
António Tavares, 57 anos, nasceu no Lobito, Angola, foi professor, autarca e jornalista, antes de se afirmar como escritor. Com o romance As Palavras que me Deverão Guiar um Dia, seria finalista do prémio Leya, que venceria em 2015, com O Coro dos Defuntos. Na gaveta, tem outros escritos, nomeadamente um romance sobre o pintor Mário Eloy. Todos os dias morrem deuses foi escrito antes, tendo sido distinguido no Prémio Alves Redol, em 2012. Voltou a embrenhar-se nele para “arredondar” a prosa, um trabalho de “filigrana”, como adianta ao JL. E ainda mal o publicou já está a escrever outro livro, olhando de novo para o passado, desta feita mais próximo, o Verão Quente de 1975. Escrever, diz ele, é também uma extraordinária “possibilidade de pensar a comunidade e o país”.
Jornal de Letras: Como se começou a insinuar literariamente a ideia de Todos os Dias Morrem Deuses?
António Tavares: Por uma curiosidade, quando me apercebi de que não havia quase referências a uma figura política da antiga União Soviética, que praticamente desapareceu dos compêndios de História.
Quem?
O sucessor de Estaline, Malenkov. Deparei-me com esse facto, numa outra pesquisa que estava a fazer. Comecei a perguntar a várias pessoas quem tinha substituído Estaline e todos respondiam Kruschev. Constatei que era uma figura que tinha sido esquecida, apagada e tentei compreender porquê.
A razão de um apagamento histórico? Foi esse o clique do romance?
Sim E isso suscitou-me outra reflexão: de que modo num país fechado, ‘orgulhosamente só’, como era Portugal nos anos 50, se podia saber o que se passava no resto do mundo, quando tudo era controlado, crivado, censurado. E como se podia falar de outro país igualmente fechado que controlava e manipulava a informação a URSS. Os EUA também não eram uma sociedade propriamente aberta, com injustiças, denúncias, caça às bruxas. Na Guerra fria, as duas potências, digamos que dois modelos de sociedade, não eram propriamente um modelo, apesar de ser diferente o que se escrevia sobre elas.
Fez correr a sua intriga romanesca em 1953, ano da morte de Estaline.
E fui ver como foi noticiada nos jornais portugueses da época, onde de resto o noticiário internacional tinha muita importância, talvez propositadamente para não se falar do nacional.
Um outro apagamento?
Sem dúvida. Como se uma nuvem pairasse sobre o país. A questão de partida seria, pois, como é que um jornalista conseguia noticiar aqui o que se passava na União Soviética. Daí o narrador que criei.
Como desenhou essa personagem? Inspirou-se em alguma figura do mundo do jornalismo?
Procurei sobretudo mergulhar na ambiência dos jornais da época e tive em conta o que conhecia das redações. Fiz uma pesquisa e li, por exemplo, todas as edições do Diário de Lisboa do ano de 1953. A partir daí, a personagem nasceu por si, com uma ligação forte ao meio rural, uma educação muito marcada, transmitida pela mãe. E, depois, a iniciação ao amor, a nostalgia da Natureza, outros condimentos que a foram compondo.
Refletindo muitas preocupações que já marcam os seus romances anteriores?
Sim. Ao encontro da ideia de viver o tempo de uma outra forma, fora da cidade. Quando o meu jornalista fala da mãe, da aldeia que deixou, até a linguagem é outra. Quis também tratar a questão da velhice. Ele é, no fundo, um velho que está sozinho e recorda a vida, que, numa fogueira, queima jornais, papéis, alguns poemas. Mais do que escritos, o que ele queima é realmente o seu passado, está a desprender-se do mundo.
O envelhecimento preocupa-o.
É uma ideia cada vez mais próxima, porque, queiramos ou não, há um caminhar para o envelhecimento e noto já esse desprendimento e despojamento em relação a muitas coisas que também poderia queimar. O que guardamos é a memória, embora mais tarde ou mais cedo também nos comece a falhar…
Nessa caminhada, se se desprendeu de muitas coisas, nos últimos anos prendeu-se à Literatura com prémios, romances. Um reavivamento, uma vida nova nas palavras?
A Literatura trouxe-me essa possibilidade de refletir sobre temas como o próprio esquecimento, a memória, a velhice. Sobretudo de pensar o coletivo, o país. Assistimos a uma viragem de um ciclo político, com a morte de Mário Soares, Almeida Santos e outros, que corresponde a uma mudança de gerações. É importante perceber como tudo está ligado com os ciclos de vida da própria comunidade. Escrever é também uma forma de o pensar e tentar compreender.
Por isso, faz cruzar o tempo histórico e o existencial na sua narrativa?
Não me interessam apenas os factos históricos, como se passassem num ecrã, mas casá-los com a vivência das personagens. Até porque não consigo conceber só um pano de fundo histórico, nem vidas sem esse berço que é a História. O que procuro fazer é envolver tudo, procurando dar literariamente como os homens e a comunidade se influenciam mutuamente. Todos os dias morrem deuses, é isso. E este romance ensinou-me também que há um mundo dos factos e outro, paralelo, da narrativa que circula sobre eles. E muitas vezes, não colam. Comprovei-o na pesquisa que estou a fazer sobre o Verão Quente.
Será o tema do próximo romance?
Já o estou a escrever. Vai chamar-se Depois do adeus.