Um irremediável casamento falhado com Sara, o desemprego, motivado pela perseguição da maquiavélica Ana Mendes, o pai falecido, forçaram a personagem principal a regressar a casa da mãe e ao bairro de infância, o Bairro Amélia, no Seixal, margem sul do Tejo, onde a atração por uma antiga colega da escola primária, Carla, simultaneamente lhe conforta e lhe frustra o desejo. Estabelece-se assim o quadro geral de As primeiras coisas (título belíssimo, que remete para a descrição e narração das coisas “essenciais” na construção de uma identidade biográfica pessoal), romance de Bruno Vieira Amaral (BVA), autor de um muito sólido ensaio literário intitulado Guia para 50 Personagens da Ficção Portuguesa (2013).
Uma mente adulta, cética, desiludida, contaminada por uma nostalgia saudosa, confronta-se com as memórias de infância, não apenas segundo o labirinto da representação mental destas memórias, mas também, e sobretudo, in actu, em concreto, avivadas pelas ficheiros e fotografias de Virgílio, revisitando os lugares da meninice e convivendo com alguns dos antigos protagonistas do bairro, hoje avelhados e decadentes. Como se constata, o quadro apresentado não é original em literatura e milhares são os romances em que uma personagem se confronta com as memórias de infância. O que perfaz a originalidade deste primeiro romance de BVA consiste na forma por que retrata este confronto memorialístico. Com efeito, após um “Prólogo”, onde manifesta as condições da origem do romance (o regresso a Bairro Amélia, acima descrito) e uma “Advertência aolLeitor”, onde explicita metodologia usada na construção do romance, perfazendo ambos 60 pp. (20 % do número total de páginas), segue-se o romance propriamente dito, que é constituído -pasme-se! -por fichas ordenadas alfabeticamente cujo conjunto constitui o retrato sociológico e existencial do Bairro Amélia.
Eis a estrutura de As primeiras coisas, criada e organizada de modo a cobrir simultaneamente o documentário sociológico, como um conjunto de testemunhos fixados duas dezenas de anos antes, que o autor sociólogo pode comprovar por experiência própria, e a ficção narrativa (a “invenção” referida na p. 59, ficção no entanto circunscrita ao critério da “consistência” da história, com a acrescida garantia de ter sido feita apenas “nos casos em que tinha a certeza da veracidade da mesma”, ibidem) Assim, o estatuto do romance reside num hibridismo entre discurso de ciências sociais, perspetivado existencialmente, e discurso literário. Como sabemos que o texto se identifica com o género literário “romance” (explicitado na capa, para não haver dúvidas), trata-se, portanto, de uma voluntária mistificação (nem sabemos se o Bairro Amélia existe, quanto mais a meia centena de personagens descritas), um logro literário, isto é, a criação de uma ilusão correspondente a um efeito de verdade. São nomeadas todas as condições para que o objeto do romance seja considerado verdadeiro, integre e participe numa história deveras real, a começar pela forma por que é apresentado: uma lista, um ficheiro, um catálogo, um dicionário.
Porém, pela leitura das fichas percebemos que o autor construiu um verdadeiro romance de personagens, desenhadas labirinticamente, cada uma lançando raízes no solo comum do Bairro Amélia.
São personagens enquadradas num bairro popular, um aglomerado crescido a partir do acolhimento de famílias de “retornados” de África em 1975, que no Bairro Amélia refazem a sua vida pessoal e profissional, famílias pobres, incultas, eivadas de uma ideologia de sobrevivência, vivendo de certo modo à margem da normalidade social: bandos que vivem dos assaltos nocturnos e regressam ao bairro de madrugada, poetas e espíritas fracassados, gangues mafiosos, marialvas mulatos, domésticas neuróticas, marujos aventureiros, mulheres vítimas de violência doméstica, mecânicos engenhocas, velhos moribundos, sportinguistas frustrados, varredores de câmara que passam por comunistas sem o serem, cozinheiras de petiscos para venda nas tabernas e pastelarias, bêbados sem remorso nem arrependimento, futebolistas malogrados, vendedores de carros usados, abortadeiras, carreiristas políticos, dentistas de vão de escada, doutores de pobres, fazedores de enguiços…
Um autêntico labirinto de personagens neorrealistas, sem, evidentemente, a candura ideológica destas. De verdade, mais do que personagens neorrealistas portuguesas, constituem um efetivo elenco de personagens saídas dos romances de Jorge Amado, cada um com a sua singularidade individual, o seu tique pessoal, cómico ou burlesco, satírico ou grotesco, verdadeiras personagens fellinianas afastadas da normalidade social ou, dito de outro modo, porque todas invulgares, cada uma a seu modo, acabam por constituir a verdadeira normalidade do povo, ou, como dizem os brasileiros, do “povão”.
Um muito original romance de estreia, escrito com grande maturidade estética e forte conhecimento da realidade descrita. O anúncio de um futuro grande escritor.