Subtrai-se por vontade às andanças da Literatura, cega o espaço à sua volta, vive à margem do sistema literário e não só, num certo resguardo. O retrato de Herberto Hélder compõe-se em movimento e em negativo. Nem prémios – recusou mesmo o avultado Pessoa, em 1994 -, nem entrevistas, nem fotografias nos jornais, nem falatório mediático, nem conversas com leitores. Nada. São raríssimas as imagens em que ficou retratado. Não se lhe conhecem entrevistas, sequer umas declarações nas últimas décadas. Há apenas a remota lembrança, quase lenda, de uma ou outra entrevista inicial como aquela a Fernando Ribeiro de Mello, publicada em Maio de 1964, no Jornal de Letras e Artes. Nela, o poeta, que já tinha cinco livros editados, recusava a ideia de evolução na sua produção poética. “Em certo sentido (que também prezo), não houve evolução. Esse sentido é o da fidelidade às bases da minha experiência – a descoberta do modo – que, fundamentalmente, se cumpriu na infância. A experiência exterior poderá ser considerada simples desenvolvimento ou enriquecimento ‘em linguagem’. A minha poesia processou sempre, como é evidente, exercer-se sobre essa massa central e viva. Mas a experiência humana é apenas ponto de partida, núcleo sólido e permanente onde assenta a experiência posterior da criação”. E noutro passo, acrescenta: “O prestígio que possa ter alcançado (prestígio equívoco no qual se integra a malquerença de alguma gente, que aceito com satisfação) não poderia constituir uma poltrona. O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento”.Numa outra entrevista à revista Luzes de Galiza, em 1987, sublinhava “Todos os poemas são canções de eco, procuram ser confirmados. De que sítio se lança a voz, que género de confirmação se pretende? A confirmação, sempre, do poema a si mesmo e em si mesmo”. E mais adiante: “Há quem se ponha no centro de câmaras ecoantes: e os ecos chegam de todos os lados: as respostas caóticas, o êxito, o erro, a morte da alma (…) Quanto ao mundo, o poema espera tudo dele menos o equívoco, embora seja o equívoco aquilo que se encontra mais à mão no mundo”. Herberto Hélder faz parte de um número muito restrito de escritores, tal como por exemplo Thomas Pynchon, que recusa a ribalta, o espectáculo. Manuel Alegre admira nele justamente esse “estilo de vida que rima com a sua poesia, o distanciamento da literatice, dos prémios, do academismo com tudo o que isso implica de renúncia”.
Todos os superlativos
Sabe-se dele a poesia infinitamente escrita e reescrita, feita e refeita longe do mundo e da mundanidade. “O feroz magma da magia, os raios lacerados do entendimento transmutador, a solar gnose do corpo total, a obscura cintilação dos abismos transpsíquicos enodoam-se na lenta e ampla voz da sua escrita repetida como uma encantação”, conforme escreveu Joaquim Manuel Magalhães num dos textos de Os dois crepúsculos.
Uma obra que se distingue por um poder criador que “soube organizar um universo inconfundível e servido por uma transbordante energia verbal”, segundo Fernando Pinto do Amaral. Ou a capacidade inovadora sublinhada por Manuel Alegre ao JL no tema dedicado a Herberto Hélder em 1994 (JL 626): “Depois de Camilo Pessanha e de Fernando Pessoa, Herberto foi aquele que mais revolucionou a poesia portuguesa”. Na mesma altura, Agustina Bessa-Luís ia mais longe: “Usem todos os superlativos”. E todos não serão de mais para uma tão extraordinária poética, que surpreendeu o meio literário desde o primeiro verso de O amor em visita, publicado em 1958, na Contraponto de Luiz Pacheco. E que desde logo se afirmou por uma profunda novidade que muitos poemas mais tarde seria uma herança viva para a Literatura Portuguesa.
A colher na boca (1961), Os passos em volta (1963), A Máquina Lírica, primeiro editado com o título Eletrónicolirica (1964), Húmus, Retrato em Movimento (1967), Cobra (1977), Photomaton & vox (1979), A cabeça entre as mãos, (1982), A última Ciência (1988) são alguns dos seus livros. Muitos foram reescritos sucessivas vezes em sucessivas edições. Todos de referência.
O profeta da poesia
De Herberto, além das palavras, e da sua “oficina” alquímica da linguagem, sabem-se meia dúzia de coisas que talvez não cheguem para clarificar a sua existência deliberadamente obscura. Mas provavelmente bastam para um photomaton biográfico. Nasceu a 23 de Novembro de 1930, no Funchal. A mãe morreu quando tinha oito anos. Fez o 5.º ano do Liceu na Madeira e em meadosdos anos 40 veio estudar para Lisboa. Feito o 7.º ano seguiu para a Universidade de Coimbra. Na parede do “Palácio da Loucura”, a república onde vivia, deixou gravado um verso: “O senhor do monóculo /usava uma boca desdenhosa /e na botoeira, a insolência /de uma rosa / – Era o poeta”.Começou por estudar Direito, depois mudou-se para Filologia românica e frequentou um curso de Ciências Pedagógicas. Andava teso como a generalidade dos estudantes, uma “simpática miséria, com poucos cobres, muitos copos, comezainas e altas discussões pela calada da noite”, como recordava o psiquiatraManuel Louzã Henriques, companheiro desses tempos. Tal como Manuel Alegre que já então o considerava o “profeta” da poesia. E um dia Herberto largou a Universidade e demandou Lisboa para ser poeta.
Trabalhou na Caixa Geral de Depósitos e como angariador de publicidade do Anuário Comercial Português, regressando depois ao Funchal, onde trabalhou no Serviço Metereológico Nacional. De novo em Lisboa, passa pelo Instituto Pasteur, como delegado de propaganda médica. Depois de ter publicado alguns poemas avulsos e colaborado em algumas publicações, nomeadamente nos Cadernos do Meio-Dia e nas Folhas de Poesia, saiu do país. Viveu em França, Bélgica, Holanda e Dinamarca e foi empregado de cervejaria, cortador de legumes, enfardador de aparas de papel, policopista, carregador de camiões, ajudante de pasteleiro, guia de marinheiros em bairros de prostituição. Em 1961, é repatriado. Colaborou em vários jornais, suplementos literários e em 1971 foi para Angola. Lá fez várias reportagens para a revista Notícia, onde continuou já de novo em Lisboa. Uma entrevista com o cantor brasileiro Nelson Ned e uma reportagem sobre um derby Sporting-Benfica, a que chamou Uma ida ao campo, são alguns dos seus louros jornalísticos dessa época.
Também foi director literário da editorial Estampa, funcionário do serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, revisor tipográfico, redactor de noticiários da RDP, ou de publicidade. E andou por muitos cafés, mais ou menos literários, do Gelo ou do Royal ao Monte Carlo e ao Toni dos Bifes, passando pelo Expresso ou pelo Águia d’Ouro, nas escadinhas do Duque. Os que o conhecem, os que tiveram o privilégio de o ouvir falar, rir em cavaqueira, comprovam que os poemas têm a medida daquele que os cria. Foi o que constatou o cineasta João César Monteiro, como afirmou nessa edição do JL: “De vez em quando, ele soltava umas que iluminavam as tardes”.
Os outros que só o escutam nos livros sabem que é uma voz única, um flash, um clarão de poesia. Pouco importa a imagem, as feições ténues que conhecemos das poucas fotografias todas muito antigas. O seu rosto, a sua fala, a sua biografia é poema. Ou o poeta é acto. Ou como dizia Herberto Hélder à Luzes de Galiza: “Porque é obrigatório dizê-lo: pouca gente tem ouvidos puros. Ou mãos limpas. Ler bem um poema é poder fazê-lo, refazê-lo: eis o espelho, o mágico objecto do reconhecimento, o objecto activo de criação do rosto. O eco visual se quanto a rostos fosse apenas tê-los fora e ver. Porque o mostrado e o visto são a totalidade daquilo que se mostra e vê – o nome: revelação”.