Quando anunciaram que o Prince andava aí e que havia concerto surpresa em Lisboa não tive hipótese alguma. Não deu tempo para me organizar. A vida está exigente, tudo me custa e nada permite frescuras e veraneios. Fiquei furioso. Não vi, não estive lá, não gosto de ninguém que tenha conseguido bilhete e assistir. Detesto quatro mil e não sei quantas pessoas, uma a uma.
O Prince estreava aqueles vídeos festivos, lascivos, cachopas giras em poses, e eu achava que ele tinha o estilo todo. Era mau num bom sentido. Devia ser feliz. Eu achava muito que o Prince rejubilava por estar vivo. E adorava-o. Ficou-me para sempre o hábito de gostar muito dele. Também o hábito de o pensar como um mistério grande da contemporaneidade. Desses que não se desarmam, ficam para sempre a confundir-nos.
Como eu teria uns dezasseis anos, ainda era capaz dos falsetes circenses para o imitar a cantar o Kiss, arriscando dar dois passos de dança na sala dos meus pais, sem ninguém ver. Não poderia dançar com assistência. Era descoordenado e tão elegante quanto as avestruzes. Só era bonito nos sonhos e em alguns domínios do coração. Adiava-me nos assuntos todos. Acreditava que, se a vida valesse a pena, isso só se revelaria lá para depois dos trinta. Não me enganei muito. Ansiava, no entanto, por ter uma sensualidade qualquer, algo que servisse para ofuscar as borbulhas na cara, a barba mal distribuída, o bigode deprimente. O Prince, por seu lado, tinha a sensualidade toda. As pessoas olhavam para ele para saberem como era ter-se carisma e ser-se irresistível. Parecia uma visão da evolução superior da humanidade. No futuro, pensei, iríamos todos ser assim. E iríamos todos namorar com a Jill Jones, e ela estaria sempre a cantar Tu vuole la mia bocca, com aqueles sapatos na mão, o vestido justo e curto como tanto gostávamos de ver.
Nos anos 80, com o Michael Jackson para a malta mais bem comportada e a Madonna para curar rapazes e raparigas virgens, o Prince era tudo. Absolutamente genial e inesgotável, tornava-se consensual que o mundo precisava dele, nunca tinha visto nada igual. Eu, que gostava dos três, estava convencido de que When Doves Cry seria a melhor canção de sempre e sentia-me muito mais maduro por achar tal coisa. Ouvir a Madonna, por exemplo, nunca me fez sentir maduro, apenas me criou urgências e tiques.
Há uns anos veio no jornal que o Prince andava no Bairro Alto com a Ana Moura e eu odiei o Bairro Alto. Estava em Braga, nessa noite, e não havia modo nenhum de o vislumbrar num acaso. Eu gosto que o Prince ande com a Ana Moura, porque se tem de escolher um português para amizades é bom que escolha uma diva maravilhosa como ela. Se o Prince andasse atrás de outra pessoa em Portugal eu cortava os pulsos de inveja. Depois, algum amigo meu o viu e mandou mensagem a avisar, numa alegria que me deprimiu.
Há qualquer coisa de deprimente na existência das figuras que nos inspiram demasiado. Quando as oportunidades nos trazem uma ao pé não sabemos o que lhe fazer, dizer, e é uma tolice procurar retribuir o que quer que seja, porque a absoluta familiaridade que sentimos com ela não lhe permite ter a mais vaga impressão de familiaridade connosco. Quando as vemos estamos, na verdade, sozinhos.
Claro que não é sobre o ver o Prince passear no Bairro Alto que me vem a angústia. É pior. A angústia existe por achar que estamos sempre aquém das pessoas e das situações, como se fôssemos um bom bocado incompetentes para a vida. Desperdiçamos tudo. Os anos 80 já foram e o Prince continua incrível e o mundo está diferente e só podemos viver errados em relação a tudo, porque não nos vejo a chegar perto de termos todos sensualidade e namorarmos com a Jill Jones. Estamos no caminho errado. Numa cilada.
Tenho estado a ouvir os últimos discos do Prince para me compensar do que me doem os cotovelos. Não há nostalgia. O assunto Prince não é sobre o passado, é sobre perder futuro. Talvez possa existir nostalgia do futuro, essa sensação desagradável de rodar a nave para outro lado, um que se indefine perante coisas que já tínhamos aprendido e desaprendemos sem saber por que razão. Ouço os discos do Prince para me convencer de que há de haver modo de não nos perdermos completamente. Algures existirá um sentido, um propósito que nos apazigue. Algo que nos explique cada bizarria do percurso.
Prefiro as canções meladas. Dá-me para achar que são verdadeiras. Têm qualquer coisa de amor por toda a gente. Não sei. Isso de serem românticas e o romantismo estar em extinção e sobrar apenas como tópico para as artes. Um dia, vamos deixar a palavra amor exclusivamente para o vocabulário técnico das artes. Amar será uma relação baralhada com os artistas. O resto vai ser sempre mais embrutecido.