Politicamente realista, só acredita no Paraíso por escrito. A Literatura é a utopia possível de Mario Vargas Llosa. O escritor peruano, de 67 anos, que é um dos nomes maiores da Literatura contemporânea, esteve em Lisboa para apresentar o seu novo romance, O Paraíso na Outra Esquina, e falou ao JL
Tem duas dezenas de livros publicados, milhões de leitores em todo o mundo e uma utopia: a Literatura. Talvez a Academia sueca lhe deva um Nobel, mas não são os prémios que o fazem escrever. Mario Vargas Llosa es-creve porque essa é a sua “maneira de viver”, como dizia Flaubert, a quem muito admira.”A escrita tornou-se quase uma respiração” -as-severa.
Nascido no Peru, em Arequipa, em 1936, sus-tenta-se a si próprio desde os16 anos. Casou cedo com uma tia mais velha e teve sete ofí-cios, de uma biblioteca a um cemitério. Porém, foi como jornalista que verdadeiramente ini-ciou a sua carreira nas letras, até porque do muito que observou como repórter fez maté-ria-prima da sua ficção. Estudou em Espanha e viveu muitos anos na Europa, tendo traba-lhado em Paris e Londres. À docência universitária e à ac-tividade literária acrescentou sempre um forte empenha-mento social e político. Che-gou a ser candidato à Presidên-cia do Peru, mas sobretudo é uma voz que se faz ouvir sobre o curso do mundo, através das suas crónicas e intervenções pú-blicas. Exemplo disso é tudo o que tem escrito sobre o Iraque, onde esteve recentemente. Foram devorados pelo tempo ou pelo desencanto os seus juve-nis arroubos marxistas e a estima por Fidel e pela revolução cubana. O escritor peruano pri-vilegia hoje o liberalismo social, declarando o seu amor à ideia de liberdade e de democra-cia global.
Conversa na Catedral é porventura o seu ro-mance mais aclamado, mas da sua bibliogra-fia podem destacar-se obras de eleição como A Casa Verde, O Falador, Quem matou Pa-lomino Molero? ou A Guerra do Fim do Mundo. Mario Vargas Llosa acaba de lançar em Portugal o seu novo romance, O Paraíso na Outra Esquina, uma edição conjunta da dom Quixote e do Círculo de Leitores, em que fala de duas personagens do século XIX, Flora Tris-tán, uma internacionalista e feminista avant la lettre e o seu neto, o pintor Paul Gauguin.
E já está a trabalhar no próximo livro, um en-saio sobre Os Miseráveis, de Victor Hugo, uma obra que animou a sua descoberta da leitura, tal como Salgari ou Júlio Verne, que o fize-ram desejar a aventura da Literatura. Até hoje. Jornal de Letras -Alguma vez sentiu que pisava os calcanhares da felicidade, como diz a dada altura o narrador sobre uma das personagens de O Paraíso na outra esqui-na? Mario Vargas Llosa -Só quando se carece de imaginação e de desejo é possível um es-tado de felicidade permanente. A felicidade apenas pode ser transitória. Claro que eu já me senti muito feliz, sobretudo em experiên-cias vinculadas ao amor e ao meu trabalho. A Literatura já me deu momentos de grande exal-tação.
JL -Por exemplo?
M.V.L. -Quando vi publicado o meu primei-ro livro, em 1958. Eu tinha 22 anos e esse livro de contos tinha ganho um prémio em Espa-nha, onde era estudante. Recordo que foi uma grande felicidade vê-lo editado, porque era a confirmação do sonho de ser escritor.
JL -Alimentou esse sonho desde muito jovem?
M.V.L. -Ainda criança, já lia muito e escre-via pequenos poemas e relatos. Mas não ima-ginava que alguém pudesse dedicar a sua vida apenas a escrever. Isso parecia mesmo impos-sível, no Peru. Mas creio que inconscientemen-te já o desejava. Ser escritor foi a vocação que se me impôs com mais força.
JL -E os momentos de felicidade são mais ou menos propícios à Literatura?
M.V.L. -Julgo que a felicidade é mais uma consequência do que uma causa. As frustra-ções, os fracassos, o sofrimento e a dor são, muitas vezes, o ponto de partida de uma aven-tura literária.
JL -Como lhe acontece um romance?
M.V.L. -É um processo demorado, inicial-mente inconsciente. Em geral, o ponto de par-tida é algo vivido, uma experiência, uma ima-gem que ficam na memória e, pouco a pouco, tornam-se fantasia. A dada altura, dou-me conta que ando às voltas com uma ideia que é o cerne de uma história. Então, posso co-meçar desde logo a tomar notas e apontamen-tos, a documentar-me, mas não começo a tra-balhar de imediato. Espero para ver se essa ideia embrionária passa a prova do tempo. Às vezes, demora anos antes que comece a escrever.
JL -Quando começou a germinar a ideia de O Paraíso na outra esquina?
M.V.L. -Tudo começou com Flora Tristán. Quando era estudante universitário, li as suas Peregrinações e tive logo a ideia, a princípio muito vaga, de um dia escrever uma história inspirada nessa personagem. Só 40 anos de-pois a levei à prática.
IDEAIS DE VIDA
JL . O que o fascinou tanto na figura de Flora Tristán?
M.V.L. -O espírito rebelde, a valentia, a von-tade de ferro para tocar para a frente o seu ideal. E também a coragem com que viveu as ad-versidades, os fracassos, as humilhações, o so-frimento. E nada disso a corrompeu. Mante-ve a sua generosidade, o seu idealismo até ao fim.
JL -Tinha portanto todos os ingredientes de uma personagem literária?
M.V.L. -Foi, realmente, uma personagem muito literária e que sem o saber, acostou a sua vida ao modelo da heroína romântica.
JL -Ela foi também uma vanguardista de-fensora dos direitos das mulheres e porven-tura a primeira internacionalista.
M.V.L. -A União Operária, que ela fundou, foi o embrião da Primeira Internacional. Con-tudo, o marxismo nunca a reconheceu.
JL -E Paul Gauguin? Como surgiu na his-tória?
M.V.L. -Já tinha começado a escrever o romance e nas biografias e ensaios sobre Flora Tristán havia referências ao mundo de Gau-guin. Descobri que havia semelhanças de per-sonalidade e de carácter entre a avó e o neto, que nunca se conheceram. Surgiu-me então a ideia de fazer um contraponto entre as duas personalidades, que representam duas formas de utopia, duas ideias distintas da felicidade humana…
JL -… A utopia política de Flora Tristán e a artística, de retorno a um mundo primi-tivo, de Paul Gauguin…
M.V.L. -Uma mais colectivista, a outra mais individualista, uma centrada sobre a ideia da justiça, a outra sobre a beleza e o prazer. Não só essas utopias são muito interessantes, como as próprias vidas das personagens que encar-nam essas ideias utópicas. Foram duas vidas de aventura, de grande criatividade e também de muitas provas por que tiveram de passar.
JL -São essas personagens movidas pela inquietação que literariamente mais lhe in-teressam?
M.V.L. -Gosto de personagens desassosse-gadas.
JL -E que tal como Flora Tristán e Paul Gauguin, a dada altura são capazes de mudar de vida? A sua literatura gosta des-ses momentos em que uma vida se decide?
M.V.L. -Exactamente. Dá-se essa mudança nas duas personagens deste romance. No caso de Flora Tristán, com a viagem ao Peru, em que se converte numa revolucionária, em al-guém que quer transformar em acção políti-ca o que até então era apenas um estado de ânimo. Por seu lado, Paul Gauguin, quando descobre a pintura, transforma inteiramente a sua existência noutra coisa, para poder reali-zar um ideal, tal como a avó.
JL -No entanto, nenhum deles alcança esse paraíso?
M.V.L. -A utopia é um sonho impossível, a sua busca está, à partida, condenada ao fra-casso. Mas nessa busca, realiza-se uma obra, uma existência e é isso que me parece verda-deiramente extraordinário nestas personagens, como em muitos outros utopistas.
UTOPIAS APOCALÍPTICAS
JL -Foi para falar das utopias do século XXI, ou da falta delas, que quis contar a vida destes utopistas do século XIX?
M.V.L. -Creio que a ideia de utopia é válida para o século XIX e também para o século XXI. A busca de uma sociedade per-feita é uma só, ainda que as circunstâncias envolventes va-riem muito. Por outro lado, a formação de uma personalida-de em torno dos seus ideais é também um fenómeno antigo e contemporâneo. Este ro-mance tem uma paisagem histórica, mas pode dizer-se que a sua temática é contemporânea.
JL -Quais são as utopias políticas contem-porâneas?
M.VL. -Não sou partidário das utopias polí-ticas. Penso que, no campo político, é melhor o realismo. Isto é, aceitar as possibilidades reais e não fixar objectivos impossíveis. De resto, os seres humanos são distintos e o que faz uns felizes não contenta outros. Só através da vio-lência se pode impor uma única ideia de feli-cidade. Todas as utopias sociais levaram a apo-calipses, quando se materializaram. Um exemplo disso foi a Inquisição. Foi criada em nome de uma sociedade perfeita em que fosse abolido o sacrilégio, a heresia, em última ins-tância, o pecado. O resultado foram as tortu-ras, a censura, os autos de fé, as fogueiras. O século XX também está cheio de intenções utó-picas, como o nazismo ou o comunismo. Não foi a prática utópica e messiânica que fez avan-çar a sociedade, mas essa coisa realista que é a democracia. Mas acredito que a utopia é be-néfica para a Humanidade, nas Artes, na Li-teratura, no plano da vida individual.
JL -O liberalismo também não implica a utopia de um mercado regulado por uma mão invisível?
M.V.L. -Não é de todo uma utopia, é uma realidade. Adam Smith nunca falou de paraí-sos, nem sequer dos mecanismos económicos como fundamento de uma civilização. Os crí-ticos têm essa visão caricatural do mercado. Mas é a organização de uma sociedade em fun-ção de um sistema de regras de jogo que per-mite um mercado livre e o exercício da liber-dade individual. Isso traz o progresso, o desenvolvimento económico, melhores con-dições de vida, mais possibilidades de reali-zação dos ideais pessoais. Mas a felicidade é algo tão privado, que a política não deve in-terferir.
JL -Qual é a sua utopia?
M.V.L. -Construir uma obra literária que me sobreviva e que diga aos leitores do futuro o que me dizem hoje os livros de que gosto.
DEMOCRACIA GLOBAL
JL -Acha que se pode falar hoje de uma utopia ecológica ou anti-globalização?
M.V.L. -A globalização está em marcha, em-bora ainda muito desigual. No campo da in-formação, por exemplo, há uma grande inter-nacionalização.
JL -Prefere o termo internacionalização?
M.V.L. -Soa-me melhor e a estética preocu-pa-me… Mas é indiferente. Importa-me so-bretudo que signifique globalização da de-mocracia e da cultura da liberdade. Se assim for, os mercados funcionam de uma manei-ra positiva. Caso contrário, são um factor de exclusão e de discriminação. Por outro lado, penso que a luta anti-globalização confunde muitas coisas.
JL -Que coisas?
M.V.L. -É um movimento onde se misturam, por exemplo, jovens idealistas, ecologistas, que acreditam que a globalização vai destruir o meio ambiente, nacionalistas que reaccionariamen-te querem confinar os países e ensimesmá-los de acordo com a ideia de Nação, e também os nostálgicos do comunismo e do fascismo.
JL -Bom, nem só…
M.V.L. -Digamos que é uma mescla de gente muito confusa. Pesando os prós e os contras, penso que a globalização é uma coisa boa, so-bretudo para os países pobres, porque podem queimar etapas no desenvolvimento. Se não houvesse internacionalização da economia, a Espanha não seria um país tão moderno, o Chile não estaria a progredir à velocidade a que está, a Coreia do Sul não teria o mesmo desenvolvimento. Evidentemente, a globali-zação será imperfeita, se não se globaliza a cultura da liberdade, a legalidade, os direitos individuais, o respeito pelos contratos. São as-pectos fundamentais que infelizmente não estão a ser globalizados à mesma velocidade que a informação ou a técnica.
JL -Voltemos ao romance. Fez uma pes-quisa aturada…
M.V.L. -Foi um trabalho que durou três anos. A pesquisa e a escrita correm paralelamente.
JL . Inclusivamente, percorreu todos os lu-gares por onde andaram Flora Tristán e Paul Gauguin. Porquê?
M.V.L. -Quis encontrar motivos de efabula-ção para escrever. Não se trata de buscar a ver-dade, mas de procurar uma matéria-prima para a criação.
JL -Quer dizer que se preocupa com a fi-delidade narrativa e não com o rigor his-tórico?
M.V.L. -Exacto. O importante é que a histó-ria vá surgindo e que eu sinta a segurança que nunca tenho quando começo a escrever.
JL -Ao fim de tantos anos de escrita, con-tinua a sentir a insegurança do principian-te? M.V.L. -Sim, sinto-me muito inseguro, quan-do começo um livro. A pesquisa dá-me a se-gurança da familiaridade com os ambientes, as paisagens, os objectos.
JL -A investigação tem um peso maior no caso dos seus romances com um recorte mais histórico como é o caso de A guerra do fim do mundo?
M.V.L. -Há uma base histórica, mas depois há muita invenção e manipulação do facto his-tórico.
JL -É curioso que a sua obra joga-se entre os temas de matriz histórica, ou da menta-lidade latino-americana, e um esteio clara-mente europeu…
M.V.L. -Digamos que isso reflecte o que tem sido a minha vida. As minhas raízes são pe-ruanas, muito latino-americanas até do ponto de vista linguístico, mas a minha formação passa pela Europa, onde provavelmente vivi mais tempo.
JL -Sente-se mais europeu do que latino-americano?
M.V.L. -Não. Considero-me peruano, lati-no-americano, espanhol, europeu. Sou tudo isso, o que é um grande enriquecimento. Se pudesse ser mais coisas, melhor. Quando es-crevo, alimento-me de tudo o que me rodeia, aproveito o que vou vivendo e a vida em torno da minha própria vida. Tudo o que estou a fazer, a ler ou a ver é canibalizado pelo livro que estou a escrever.
VOCAÇÃO REALISTA
JL . Para além da ficção, a sua escrita é também um instrumento de acção política?
M.V.L. . Escrevo artigos jornalísticos e co-mento a actualidade política. É uma maneira de participar no debate cívico. De resto, a po-lítica nunca foi uma vocação.
JL . Mas até foi candidato a presidente do Peru.
M.V.L. . Aconteceu numa determinada época, em circunstâncias especiais. Aprendi muito, mas não quero voltar a repetir a experiência.
JL . Porquê?
M.V.L. . Porque acima de tudo aprendi que não era um político. Sou um escritor.
JL . E política e Literatura nunca se mis-turam?
M.V.L. . São dois mundos distintos, mas não totalmente separados. A política pode tornar-se em material de trabalho para a Literatura. Tal como tudo o que faz parte da vida. Mas a Literatura não pode estar ao serviço da po-lítica.
JL . O que se passa com a literatura lati-no-americana, depois do realismo mágico?
M.V.L. . Há um movimento muito inten-so e renovador. Mas uma das característi-cas dos escritores, que estão a surgir, é que são mais realistas do que mágicos.
JL . O Vargas Llosa sempre o foi também…
M.V.L. . Na Literatura manifesta-se também a personalidade do escritor. E a minha voca-ção sempre foi realista. Gosto de fingir a rea-lidade e não a irrealidade. Mas como leitor, sempre gostei de ler escritores que não são rea-listas, como Borges ou Garcia Marquez.
JL . E como vê a actual realidade social e política da América Latina?
M.V.L. .Vive-se um momento difícil, há uma profunda crise económica que teve expressão dramática na Argentina ou na Venezuela. Mas pelo menos não houve um regresso às ditadu-ras militares e, por vezes, com problemas muito sérios, as democracias têm-se mantido.
JL . Figuras como Lula ou Kirchner podem ser sinais de esperança para todo o conti-nente sul-americano?
M.V.L. . Lula é um caso interessante, porque evolui da esquerda para posições mais mode-radas, quase social-democratas, o que pode ser muito positivo para o Brasil. A grande incer-teza passa por ver como é que a sua base elei-toral vai reagir. Se resultar, poderá ser sobre-tudo um exemplo para toda a América Latina. Sobretudo de pragmatismo, coisa que sempre faltou à esquerda sul-americana.
JL . Recentemente, esteve no Iraque. Como viu a situação no terreno?
M.V.L. . A situação é muito violenta, mas de-pois da aprovação do Conselho de Seguran-ça, da partilha de responsabilidade na recons-trução e democratização do Iraque, esse processo está em marcha e poderá ser um país-chave no Médio Oriente. Porque se se moder-nizar e democratizar, isso terá um efeito ex-traordinário em toda a região onde, praticamente, não existe uma democracia.
JL . Como observa a marcha do mundo, no início do século XXI? M.V.L. . No século XX, a grande oposição foi claramente entre a cultura democrática e os totalitarismos. A democracia triunfou. Agora, a grande confrontação é entre a demo-cracia e os terrorismos. A minha esperança é que a democracia também triunfe. Mas have-rá muitos mortos pelo caminho.