No ano em que nasci, Manuel Alegre viu a sua (nossa) pátria derramada na gare de Austerlitz: “Minha pátria sem nada/sem nada/despejada nas ruas de Paris”, como escreveu num dos poemas mais belos do livro A Praça da Canção. Era o confronto do poeta com a tragédia de um povo deliberadamente mantido analfabeto e supersticioso, a desaguar humilhado numa Paris que, um ano depois, queria ser realista e exigir o impossível.
Agora façamos de conta que estamos num filme e apliquemos o separador: “Paris, 40 anos depois”. Flanando pelas lojas da moda, com os meus companheiros de viagem, somos discretamente seguidos pela curiosidade da jovem vendeuse. “São portugueses?”, pergunta finalmente, com sotaque brasileiro contaminado pelo francês materno. E desfia, finalmente, a história do seu fascínio pela nossa língua, que aprendera numa escola em Paris, seduzida pela Bossa Nova com que fora embalada em criança.
“Vous êtes portugaise, madame?” Oui. “Un moment, s’il vous plaît”. À procura de um vestido especial para uma ocasião ainda mais especial, sou solicitamente atendida por uma empregada que chama uma colega luso-descendente, capaz de conversar comigo no meu próprio idioma. É uma mulher elegantíssima, a família originária do norte de Portugal, com quem falo longamente sobre o ensino da língua em França, as férias dela e até – imagine-se- o gosto demasiado clássico dos franceses em matéria de sapatos. Nessa mesma noite, convidada por um amigo espanhol residente em Paris, fui ouvir Mísia. E vi minha pátria, orgulhosa e universal, nas ruas de Paris.