Comemorar os 50 anos do 25 de Abril, lembrando, assinalando, sublinhando o que foi e representou, é um imperativo nacional. Que melhor ou menos bem, com ou sem a qualidade e amplitude desejáveis, mas decerto com as possíveis, está a ser cumprido. Um pouco por todo o país, por iniciativa da comissão nacional das comemorações, de autarquias, de inúmeras instituições, organizações, grupos – e de formas muito diversificadas. Imperativo nacional, em qualquer circunstância, e ainda mais quando há quem queira reconstituir, sob novas vestes, velhas e sinistras ideias (enquanto não as consegue passar a práticas…) de um criminoso passado tirânico.
Imperativo nacional, insisto, porque foi a insurreição do Movimento das Forças Armadas (MFA), a 25 de abril de 1974, o 25 de Abril, que derrubou uma ditadura implacável de quase meio século, libertou o país e o povo longamente oprimidos. E o libertou a que em todas as latitudes se chamou “revolução dos cravos”: não só pela feliz circunstância de logo nas suas primeiras horas uma mulher do povo ter colocado cravos nos canos das espingardas dos soldados, imagem que correu mundo, como sobretudo pelo seu caráter pacífico, generoso, sem derramamento de sangue. Os únicos quatro mortos desse dia, recorde-se, foram quatro jovens assassinados ainda pela Pide, a rajada de metralhadora, quando com outros populares se manifestavam em frente à sua sede em Lisboa.
Foi o 25 de Abril que nos deu, antes de tudo, a Liberdade, valor primeiro, maior – e com ela a dignidade, a democracia. Foi o 25 de Abril que pôs fim à guerra colonial, guerra que matou e estropiou dezenas de milhares de jovens portugueses, e roubou anos vida a centenas de milhares.
Foi o 25 de Abril que fez com que Portugal deixasse de estar “orgulhosamente só” no mundo, internacionalmente condenado, para ser um país respeitado e considerado no concerto das nações. Mormente no organismo que universalmente as reúne e representa, a ONU, que tem hoje como secretário-geral um português do 25 de Abril – António Guterres.
Voltando especificamente à Liberdade, para ser inteira/verdadeira não se pode confinar à ausência de repressão e a eleições limpas, antes pressupõe, exige, a igualdade de oportunidades, a justiça social, a solidariedade, a tolerância, o respeito sem mácula pelos Declaração Universal dos Direitos Humanos. O que entre nós equivale a dizer o respeito sem mácula pela Constituição da República Portuguesa, de 1976, que exatamente consagra/institucionaliza o 25 de Abril, seus grandes princípios e valores.
Como se sabe, ou seria bom que se soubesse, a polícia política e a censura foram dois, ou mesmo os dois, suportes principais da ditadura. A polícia política, como é próprio das tiranias, funcionava como ameaça constante, decisiva promotora do “medo”, que as tiranias cultivam e impõem. Medo bem justificado: cerca de 35 mil presos políticos registados durante o “fascismo à portuguesa”, polícia sem nenhum controle, prisioneiros sem nenhum direito, como o de ter advogado nos interrogatórios, em que a tortura era instrumento usual, em alguns deixando sequelas gravíssimas ou chegando até à morte.
Quanto à censura prévia, para tudo que era espetáculo e imprensa, no que toca à imprensa dela quem dependia a autorização para fazer e/ou dirigir jornais e revistas, e o seu objetivo central era impedir que os portugueses conhecessem a realidade e situação do país. Não havia nenhuma espécie de liberdade de informação e de expressão, abundavam os temas tabus, de protestos e greves (mesmo no estrangeiro) a sexo e adjacentes – sendo tabu absoluto tudo que se relacionasse com a guerra colonial. E como se sabia que textos de opinião contrários ao “pensamento” oficial, único como o partido único, eram cortados, nem sequer valia a pena escrevê-los… Assim, cortado eram sobretudo notícias, artigos, reportagens sobre factos, acontecimentos, situações que os censores, por decisão própria ou em cumprimento de ordens superiores, entendessem – amiúde de forma estúpida, incompreensível – poderem ser desfavoráveis ao “regime vigente”.
Como advogado, mormente de presos políticos, e ainda mais como jornalistas, já com muita e dolorosa experiência da censura na imprensa regional, cultural, estudantil e diária, sei bem o que era e como era o Portugal do 24 de abril, em particular nestes domínios. O que é essencial para se compreender e valorizar o que foi e representou o 25 de Abril. Sendo certo que após a revolução não se fez quase nada do que se devia para promover o conhecimento generalizado dos crimes da ditadura e apuramento das respetivas responsabilidades.
E só em 1977, já no 1º Governo Constitucional, chefiado por Mário Soares, foi criada a Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista, “para investigar os abusos cometidos durante a vigência do regime ditatorial”. Constituída por cinco figuras destacadas da “resistência”, e outra que o não era – eu próprio, há 21 anos seu único sobrevivente –, a comissão não tinha, porém, condições para desenvolver o trabalho desejável e necessário. Fez o possível, publicando 25 volumes sobre vários temas, e foi extinta por um governo de Cavaco Silva.
Face ao que deixei dito, e ao incomparavelmente mais que aqui não cabe dizer, é óbvio que sem o 25 de Abril o JL não seria possível. Neste sentido – e não só – como tanto, tanto em Portugal, o JL é também um produto do 25 de Abril. Aliás, na coluna de abertura do nº 1 do jornal, em que o apresentava, dizia ao que vínhamos, finalizava assim:
“Sem dúvida o JL é uma aposta e um desfio. Contra muitas coisas, entre as quais se contam o obscurantismo, o sectarismo, a intolerância (…). E a favor de muitas outras, entre as quais avultam a mudança de mentalidades e as transformações culturais que se impõem e que o 25 de Abril – também nossa razão de existir e de ser – ainda não conseguiu realizar”.
Assim, claro que desde 1981 até hoje, publicamos inúmeros e magníficos textos sobre a revolução de 1974, sobretudo em edições que assinalaram os seus 10, 20 ou 40 anos. E como esses textos não estão reunidos em volume, nem, que saibamos, os autores em geral os publicaram em livros, a nossa intenção inicial era esta edição ser sobretudo uma espécie de “antologia” desses textos. Porém, a unânime resposta positiva de escritores não presentes em edições anteriores e que desejávamos presentes nesta, de par com a também unânime concordância de nossos colaboradores permanentes – incluindo os do JL/Educação – em escreverem sobre o 25 de Abril, ou algo com ele relacionado, explica serem muito poucos os textos agora “republicados” – os de Eduardo Lourenço (como forma também de o homenagear, quase no fim do ano do seu centenário), Hélia Correia, Lídia Jorge, Maria Teresa Horta, Mário de Carvalho e João de Melo.
Em próximas edições, e sendo certo que as “comemorações” do cinquentenário como exigível se prolongam, na medida do possível iremos republicando outros textos, ou fragmentos deles, sobretudo de escritores, alguns dos quais já não estão entre nós. E também as autobiografias que para o JL escreveram duas figuras de topo do MFA e da revolução, Otelo Saraiva de Carvalho, que foi o chefe operacional do 25 de Abril, já desaparecido, e Vasco Lourenço, decerto o principal e sempre presente organizador/dinamizador do MFA, presidente da Associação 25 de Abril. Além de uma entrevista de Fernando Assis Pacheco a Salgueiro Maia, o rosto/símbolo dos capitães de Abril que no Largo do Carmo consumaram a vitória da Liberdade.
Enfim, este JL tem uma organização diferente da habitual, e é diferente desde a capa, que fazendo jus à tradição do nosso jornal (cujas primeira e outras belas capas foram da autoria do grande João Abel Manta, cuja obra na revolução se lembra na p. ), é da autoria de um raro artista, pintor, arquiteto, cenógrafo de dimensão e prestígio internacional – José Manuel Castanheira.
Tem uma organização diferente, este JL, porque inteiramente dedicado ao 25 de Abril, nos seus 50 anos tão jovens! O que é um dos seus milagres: mesmo aqueles que o viveram, em 1974, já com certa idade ou ainda muito novos, mas inelutavelmente envelhecendo ao longo deste meio século, continuarem-no a sentir, o 25 de Abril, tão jovem! Como o sentem os que já nasceram depois, mesmo muito depois dele – e são dignos da sua juventude. J