Para visitar o espólio completo da Ephemera aconselha-se o uso de calçado desportivo e transporte rápido. Se as estantes fossem colocadas umas ao lado das outros, estender-se-iam por seis quilómetros, diz-nos José Pacheco Pereira (JPP). Só que algumas delas estão a mais de 100km de distância umas das outras, o que torna a coisa um pouco mais difícil. Em Santa Iria da Azoia, nos arredores de Lisboa, o espaço que visitámos, fica o maior dos armazéns e também o mais recente. São mais de mil metros quadrados, divididos em três andares, o último dos quais ainda em boa parte por preencher. A este somam-se os dois armazéns do Barreiro e as seis casas na Marmeleira, perto de Rio Maior, onde JPP vive e tudo começou.
E se foi ali que tudo começou, nós nem sabemos bem por onde começar. No café da estação de Santa Iria sabem bem por onde Pacheco Pereira e os seus voluntários trabalham, numa atividade interminável. Um armazém que contrasta em tudo com todos os outros da zona, menos na fachada industrial grafitada. Lá dentro, além da porta perra de metal, fica um mundo tão admirável. O mais expectável, claro está, são os livros e os periódicos arrumados metodologicamente. JPP explica: “Quando há uma biblioteca com identidade própria, que ajuda a perceber a pessoa, nós mantemos o espólio”.
Ali estão, por exemplo, só da família Abecassis, três diferentes espólios, correspondentes a três gerações. Recentemente também recebeu o espólio do Ernesto Carvalho dos Santos, com elementos importantes sobre a oposição à ditadura, em Torres Vedras, de Ário Lobo de Azevedo, reitor da Universidade de Évora, com uma impressionante coleção sobre Agricultura. Outro com muita documentação sobre Timor. E o espólio de Lauro António, crítico e realizador de cinema, caixas e caixas, que estão a ser tratadas no último andar do armazém. Os números são impressionante e faz lembrar o lema de Buzz Lightyear no Toy Story: “Até ao infinito e mais além”.
A Ephemera recebeu, em 2022, cerca de 200 espólios. Ou seja, uma média superior a um espólio de dois em dois dias. Claro que alguns desses arquivos são apenas uma pasta, mas outros são largos quilos de papelada.
Pacheco Pereira é incansável na sua busca e recolha. E quando lhe perguntamos mas o que é que não lhe interessa, ele responde: “Não há limites, à partida aceitamos tudo”. Mas não se trata apenas de aceitar. Há uma postura pró ativa de busca. Para isso conta com uma rede de voluntários em todo o país, homens e mulheres que conhecem a realidade local e estão atentos a espólios que se podem perder. A expressão mais usada é “aquilo que conseguimos salvar”. Porque, se algumas bibliotecas que reúne são de relevância incontestável, grande parte decerto iria parar ao lixo. Por exemplo, JPP diz que recentemente salvou um precioso arquivo de uma instituição pública que, entre outras coisas, incluía mapas do século XIX. Foram 22 camionetas! A essas doações ainda se junta tudo aquilo que JPP compra em leilões e afins e aquilo que ele e seus colaboradores vão recolher nas ruas, quase como respigadores.
O que dá mais nas vistas numa observação simples do espaço da Azoia, o mesmo acontecendo no Barreiro, são os enormes outdoors políticos. Há de tudo, da extrema-esquerda ao Chega; e até já lá estão os mais recentes do PS de Pedro Nuno Santos. Essa intensa recolha de materiais de propaganda política ou intervenção social não se limita, claro, aos partidos. Até já encontramos no espólio uma coleção de lonas ainda há pouco usadas nas manifestações da Vida Justa ou de movimentos feministas. Tudo é susceptível de ser guardado/preservado. Sendo que as lonas em concreto exigem um trabalho especial, pois conservam-se melhor esticadas.
Mas há também outros objetos. Como o molde de uma casa feito para uma das manifestações pela habitação: “Guardamos as coisas que ninguém guarda. Mas depois quando fazemos uma exposição as pessoas ficam espantadas com o que veem”, sublinha JPP. Ali também estão cartazes, inclusive de inequívoca relevância histórica, como aquele que a LUAR, na sua luta contra a ditadura, pretendia colar na Covilhã, quando planeava ocupar a cidade. Ou um cartaz ecologista que apareceu na capa do New York Times.
Uma das mais ricas coleções é a de autocolantes. “Foram muito importantes no período revolucionário”, afirma Pacheco Pereira. Calcula-se que haja cerca de 30 mil, uns bons milhares estão na Ephemera, sendo que já foi iniciado um catálogo, que cumpre as regras das coleções de selos, e já deu um livro da Tinta da China.
Aliás, a editora tem sido parceira das publicações da Ephemera. Durante a pandemia, a Ephemera enviou emails diários aos seus associados com objetos da coleção acompanhados por textos. Tal transformou-se no livro Diários dos Dias da Peste, um magnífico álbum. O best-seller é contudo algo bastante diferente. Amorzinho trata da correspondência entre uma jovem costureira e um empregado de escritório. “Muito interessante no ponto de vista da condição feminina dos anos 20 a 50, um arquivo dos de cima e dos de baixo”, considera JPP. Ou seja, não lhe interessa apenas objetos das classes dominantes ou do poder político, mas também de anónimos. Está ali, por exemplo, um equipamento que os operários de uma fábrica usaram nas suas manifestações e que foi salvo antes da fábrica definitivamente fechar.
Essa veia de respigador já provocou alguns equívocos e causou algumas vergonhas a JPP. A maior, lembra, relaciona-se com o ex-Presidente dos EUA. “Fui à casa de Donald Trump, com um empreiteiro português que o conhecia, para recolher papelada. À saída estava lá a RTP, a cobrir as eleições americanas,” Naturalmente que PP não é trumpista, mas não foi simples desfazer o equívoco. Aliás, episódios do género repetem-se, quando no final de uma manifestação fala com elementos de outros partidos a pedir material e logo sai a notícia: “Pacheco Pereira próximo do PS”
Enfim, ossos do ofício. Ofício de alguém que não esconde o fascínio pelo espectro político oposto, ao ponto de se ter tornado biógrafo de Álvaro Cunhal, figura central do Partido Comunista Português e da oposição à ditadura fascista.
A visita pelo espaço não para de nos surpreender. Inclusive pela quantidade de material que guarda que aparentemente não têm qualquer valor. No 1º andar, reparamos logo numa enorme coleção de latas. Latas de refrigerantes e cervejas, mas também de bolachas e biscoitos. Algumas já com ar de relíquia, outras que ainda se vendem nas lojas. Também várias garrafas de vinho. Fernando Correia de Oliveira (ler depoimento), especialista em gastronomia e tempo, mostra-nos algo porventura mais interessante. Resmas de folhas de receitas: “Isto permite-nos salvar algumas receitas do séc. XIX”
Entre latas e guloseimas, ainda faz parte do arquivo um caramelo do tempo da campanha de Humberto Delgado à presidência da República. A Ephemera chegou mesmo a contactar um laboratório para saber da melhor forma de conservar a guloseima… Entre os objetos impensáveis também estão, por exemplo, cravos do próprio 25 de Abril. Mais uma doação, de uma mulher que conservara um punhado de cravos, já ressequidos, emoldurados, numa composição de evidente valor sentimental e poético.
O 25 de Abril, claro está, é um dos pontos alto do arquivo. Há muito material sobre a a revolução e o Estado Novo, incluindo provas da censura comprados num leilão. “Salvei-os de irem parar aos Estados Unidos”, assinala JPP. E, naquele mesmo piso, uma impressionante coleção de t-shirts, prestes a serem engomadas e arrumadas, para mais tarde algumas saírem do armário para uma exposição chamada “A liberdade colada ao peito”.
Outra ideia é fazer uma exposição só com guarda-chuvas pendurados no teto. São algumas centenas de chapéus que a Ephemera acumulou, retirados sobretudo de campanhas eleitorais de inverno.
Quando pedimos a Pacheco Pereira para ler um jornal com a notícia da revolução, não se faz de rogado, e pergunta logo: “Querem o Pravda? Também tenho”. Mas acaba por optar primeiro pelo Diário de Notícias e depois pelo Jornal de Notícias, como ato de solidariedade para com os jornalistas da Global Media. Aliás, o historiador e colaborador permanente de vários orgãos de comunicação social, faz questão de dizer que colaborou com vários órgãos daquele grupo, incluindo o DN, o JN e a TSF.
A organização de exposições tem sido uma das atividades mais constantes e visíveis da Ephemera. Digamos que é o seu lado público. Os 50 anos do 25 de Abril fizeram com que se multiplicassem os pedidos. “Só de escolas recebemos meia centena de pedidos, talvez consigamos responder a metade”, assinala. “Sempre que quem a solicita não tem meios oferecemos a exposição, quando vemos que têm meios pedimos uma colaboração para cobrir os encargos”. Também está a organizar uma exposição sobre a revolução no Instituto de Defesa Nacional. A grande exposição sobre o 25 de Abril, no entanto, está a ser preparada para o Mercado do Forno Tijolo.
Há coisas espantosas, desde uma estatueta de Guterres nu, ao material completo da campanha de Soares Carneiro à Presidência da República, passando por curiosidades da época, como uma carta de um bebé Nestlé com a frase: “Tenho cara de engenheiro, vou fazer muito dinheiro”. E materiais satíricos do início do século, objetos da Alemanha nazi, uma boneca de Joana a Arrebitadora, grande símbolo do feminismo do início do século XX, etc., etc.
Parece que nada disto é muito valioso, o espólio em grande parte é feito de coisas que estavam prestes a ir para o lixo. Mas JPP afirma: “Se desatássemos a vender isto no OLX ou em leilões ficávamos milionários”…
No espaço em que conversamos com o criador da Ephemera há uma fotografia de uma mulher a olhar para uma estante, que inclui relíquias, livros, um quadro da Maluda, entre outras coisas. JPP explica que aquele espólio foi uma oferta e o objetivo é conservá-lo “com a exata disposição com que a senhora os deixara na sala de estar”. Uma ideia de congelação do tempo.
Para a Ephemera funcionar, conta com 700 associados, que pagam uma mensalidade. Mas sobretudo com um numeroso grupo de voluntários, cerca de 25 deles trabalhando em permanência no espólio. Aliás, é o que vemos lá, desde o especialista em relógios ao jovem universitário que se deslumbra com a vastidão de elementos. Mais ainda há mais do que 150 voluntários espalhados pelo país, de norte a sul, incluindo ilhas. Cabe-lhe a eles estarem atentos sempre que algum espólio fica em risco de se perder.
Os que trabalham no arquivo parecem sempre motivados e conscientes. JPP fala-nos do método e mostra-nos uma série de envelopes: “Mantemo-los sempre abertos, quando chegam novos documentos sobre o mesmo tema metemo-los lá dentro”. Pelo caminho passam duas voluntárias com caixotes para deitar fora. Com humor, JPP comenta: “Como imaginam o lixo é a atividade mais patrulhada”.
“A nossa maior despesa são os transportes”, salienta JPP, referindo-se à dificuldade logística de receber material vindo dos quatro cantos do país. “Além dos espaços, claro. Este novo armazém, maior do que todos os outros, ainda parece ter suficiente arrumo… Mas com o alucinante ritmo da Ephemera julgamos que ficará cheio até ao verão”. Isto implica ainda uma outra pecha: a dispersão. Estando o arquivo espalhado por, pelo menos, três localidades geograficamente distantes, o trabalho de investigadores torna-se por vezes difícil.
Outra das grandes preocupações é a conservação. JPP admite que não tem as condições ideais, contudo considera que fazem o seu trabalho de forma igual ou melhor do que muitas instituições. Os livros quando chegam vão 48 horas para o congelador, para matar a bicharada, as capas de couro são tratadas com creme Nívea, as lonas estendidas, os têxteis guardados em plástico, etc.
Nesta urgência absoluta de combater o efémero, perguntamos-lhe pela Internet. José Pacheco Pereira revela: “Estamos a recuperar discos em formatos antigos. Mas, na verdade, também por intervenção minha, porque escrevi um artigo sobre salvar a internet portuguesa. Existe uma instituição pública que tem tratado de salvar a Internet. Não obstante, a Ephemera tem cerda de três milhões de imagens digitalizadas. Mas não deixa de reconhecer que “a nossa atenção paira sobretudo em volta do analógico. Temos a ideia de que isso é também o que mais cativa o público nas exposições.”