Nos anos 20 do século passado, um político norte-americano foi interpelado por um jornalista que lhe exigia uma posição clara em relação à Lei Seca. “Apoia a proibição do vinho, sim ou não?”. A resposta que se seguiu é lendária. “Se por vinho você entende a terrível bebida que arruinou milhares de famílias, fazendo dos homens destroços que batem nas mulheres e se esquecem dos filhos, então sou inteiramente favorável à proibição. Mas se por vinho você entender a nobre bebida, de maravilhoso gosto, que torna cada refeição um enorme prazer, então sou contra!”. Esta anedota é recordada pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek no seu livro Violência, editado em Portugal pela Relógio d’Água numa tradução de Miguel Serras Pereira. Um século depois, esta resposta tão diplomática quanto provocatória pode ser-nos útil para refletir sobre a questão da Cultura e das Artes portuguesas em época de pandemia.
Desde o início desta crise que assistimos à propagação de uma falácia que sempre ressurge quando vivemos tempos difíceis. É uma espécie de fénix trafulha que encontramos na retórica política e na comunicação social, às vezes com boas intenções, mas sempre fruto de um enorme equívoco sobre o lugar da Cultura na sociedade. Lembramo-nos bem dela dos tempos da austeridade: é o mantra neoliberal da “crise como oportunidade” para a Cultura. Ninguém se lembraria de dizer aos operadores turísticos, aos empregados de mesa ou aos pilotos de voos comerciais que a ausência quase total de clientes poderia ser uma bela oportunidade para se reinventarem. Uma declaração deste tipo seria, por certo, entendida como um insulto. No entanto, os trabalhadores da Cultura, assim como as galerias, os museus, os editores, as salas de espetáculos ou os cinemas, são constantemente confrontados com a velha fénix trafulha: esta crise não é uma oportunidade para se reinventarem?
A pandemia que atravessamos obrigou, desde muito cedo, a uma paralisação quase total da atividade artística e cultural porque, em grande medida, esta só é possível com a presença e a participação do público. É também uma das áreas de atividade onde as consequências desta crise de saúde pública se farão sentir até mais tarde. Ainda que a reabertura de museus, teatros ou outros espaços já esteja em curso, esse regresso à vida acontecerá com enormes limitações, cujo real impacto económico e também artístico desconhecemos por agora. Tristão e Isolda terão de se apaixonar à distância de dois metros? E como poderá Isolda saber que Tristão morre a cantar o seu nome se o herói está de máscara? Numa altura em que se sentirão enormes quebras nas receitas de bilheteira por causa da limitação das lotações, haverá apoios para que os atores e bailarinos façam testes de rastreio regulares ao Covid19? Ou as políticas de desconfinamento acentuarão as desigualdades e só as salas de espetáculos mais remediadas poderão proteger os seus artistas e técnicos?
Sabemos que a Cultura foi castigada desde mais cedo e continuará a sê-lo até muito mais tarde do que outras áreas de atividade. Acresce a isto que se trata de um setor cronicamente precário, carente de legislação laboral adequada à natureza intermitente da maioria dos seus trabalhadores, que nunca foi uma verdadeira prioridade política de nenhum governo. Ainda assim, este historial não impediu que a criação artística seja um dos motores da nossa democracia, uma área de excelência em Portugal e um dos maiores motivos de reconhecimento internacional do nosso país.
Suspeito que é a célebre “resiliência” da classe artística portuguesa que a torna um alvo fácil da já familiar pergunta: esta crise não é uma oportunidade para se reinventarem? Ironicamente, é às pessoas da Cultura, que sempre viveram em crise, em constante adaptação a circunstâncias precárias, tanto em tempos de crise como nos outros, que esta questão é colocada mais vezes. Este paradoxo é uma declaração de ignorância e de preconceito. Desde logo, é preciso que nos recordemos de que os artistas e todos os seus cúmplices são “reinventores” por natureza, fazem dessa capacidade de examinar e reformular a sua criatividade um labor diário. O património cultural e a criação contemporânea do nosso país são a prova disso mesmo.
Por outro lado, ao sugerir que os artistas deviam reinventar-se, está-se a pressupor que o modelo em que operam está esgotado. A verdade é que, no caso português, esse modelo nunca chegou a ser construído. O que precisaria de ser inventado, porque não se reinventa o que nunca foi, é uma verdadeira política que responda com orçamento, visão e dignidade ao direito constitucional de acesso democrático à Cultura que o Estado tem obrigação de garantir ao povo português. Os artistas e trabalhadores da área cultural serão parceiros fundamentais desse trabalho (dialogando, reivindicando, confrontando-nos com uma enorme diversidade de estéticas e mundividências), mas a invenção que faz falta é política.
O político norte-americano do tempo da Lei Seca revela-se, assim, de uma inusitada utilidade da próxima vez que surgir a nossa conhecida pergunta: esta crise não é uma oportunidade para Cultura ser reinventar? “Se por oportunidade entendermos condenar os artistas e outros trabalhadores a adaptarem-se a condições de produção cada vez mais precárias, perpetuando a negligência política a que a Cultura tem sido votada, considerando a fruição das artes como um luxo acessório, invocando o empreendedorismo para que o Estado escape à sua obrigação de garantir um serviço público cultural: então, obviamente, que não é uma oportunidade.
Mas se por oportunidade entendermos que esta crise pode chamar a atenção para injustiças crónicas na área da Cultura, ajudar à organização da classe artística, catalisar uma reforma profunda das políticas culturais que garanta uma legislação laboral digna e adequada à natureza intermitente dos trabalhadores desta área, um aumento do financiamento público que nos permita recuperar do atraso histórico em que vivemos, contrariando a asfixia dos agentes culturais independentes e inventando uma verdadeira descentralização da oferta e da criação cultural: então a resposta é sim, inventemo-nos.