Preparámo-nos de modo excessivo para aquilo que raramente nos acontece, seja no amor, seja no exercício da nossa profissão, e sacrificamos muitas vezes a vida a uma espera absurda ou a uma melancolia derrotista. No entanto, quando nos acontece viver numa época que nos pede para estar à altura, somos rápidos a considerar muitas questões como “inúteis” e a responder às mesmas com um simples “Ainda não!”, como afirmaria Ulrich, em O Homem Sem Qualidades de Robert Musil.
O sector artístico em Portugal já padecia de todo o tipo de males, mazelas e maleitas. Quantas vezes não cambaleámos por salas de espetáculos, escondendo as nódoas negras com maquilhagem, sobrevivendo graças a heranças de loucos audazes ou apoios caídos do céu? Quantas vezes, debaixo desse fogo, sem gás em casa, sem dinheiro no banco, nos acusaram de ser ou dependentes do Estado, ou de vendidos ao grande capital?
A criação como exercício vivo de respiração alternativa do mundo, há muito que não existe. Ou existe em condições sofríveis, quase invisível, sem espectadores, em conflito permanente consigo própria e com a sociedade que a inspira. Espetáculos pertinentes não cabem em salas que as poderiam produzir, eventos que chamam milhares não nos dizem nada e nós nem reparamos.
Eis se não quando, uma gordurosa proteína nos dá um encontrão e nos retira o tapete: o nosso habitat natural, o meio social. E a transformação deu-se, sem que o sistema a acompanhasse, ou o fizesse sempre ligeiramente atrasado, como aliás, sempre acontece.
Aquele que, crítico, afirmava que a arte deixara de ser relevante, e que deixara de interferir com o curso das políticas atuais para falar só em seu nome, reconhece agora a arte como o último reduto de uma vida cheia de restrições e contingências. Aquele que se inebriava mais com a vernissage da estreia do que com a performance rebelde, defende agora, e com ansiedade, a recalendarização de todas as atividades.
E o artista pára, pensa e comove-se. Recorda uma coreografia e percebe que a dança não pode hoje existir a não ser que os corpos optem por evitar o toque. Que o monólogo passa a ser a figura central de uma peça num longo ato. Que um livro é um arquivo de lugares vivos que há duas semanas ainda existiam. E sente um nó na garganta. Um nervoso miúdinho na mão que pinta e escreve enquanto observa as ruas vazias e sabe que estão cheias de gente. Atrás das paredes, atrás das janelas, atrás das portas. E conclui: Este vírus ocupou as ruas e veio dizer-nos que a geografia e a circunstância existem, e que por mais planeado que seja futuro, ou desafiada a distância, o inesperado acontece.
Veio dizer-nos: sim, é possível mudar de um dia para o outro, não porque o queremos, mas porque alguém ou alguma urgência a isso nos obriga, e isso é profundamente triste.
Veio dizer-nos: sim, conseguimos alterar legislações, decretos e orçamentos num ápice, e a maior parte do tempo de execução é gasta na avaliação de danos políticos e saldos financeiros, não em danos terrestres, terrenos ou morais. E isso é triste.
Mas também nos veio dizer que é possível o seu contrário, aliarmo-nos a teatros, a câmaras municipais, a companhias independentes e a parceiros de longa data e pôr de pé novas formas de compor uma estante. Que há muita gente em sintonia, enquanto muita outra prefere continuar, dedicando-se mais do que nunca, a fazer o que sempre fez, mesmo que isso não faça sentido.
Veio dizer-nos que muitos de nós trabalhamos em edifícios complexos, viajando para cá e para lá, dormindo em aviões, comendo em aeroportos e, afinal, não produzimos muito mais por causa disso; veio dizer-nos que muitas das nossas profissões podem ser exercidas em casa, mas também nos veio dizer que não sobreviveríamos se muitas outras não fossem exercidas na rua, em permanente desafio com a doença e a morte.
Veio dizer-nos que não passamos tempo suficiente com os nossos filhos, que não sabemos o que fazer sem as escolas que os ocupam durante o dia e sem os avós, que os entretêm e os põem na cama de noite. Mas também nos veio dizer que é tão bom tê-los, pertinho, o dia todo, em casa.
Veio dizer-nos Alto! A Terra move-se. E nós, com ela.
Veio dizer-nos, não somos muito sem o contacto social. Sem a possibilidade de outras vidas. Sem a troca de impressões, alternativas.
Nós ouvimos tudo isto, e ainda assim, perdemos o foco. Culpamos de volta o vírus, e confundimos a recalendarização de espetáculos, ou a difusão online de peças que temos em arquivos, com programação remota de um Teatro. Cedemos património artístico gratuitamente como se isso fosse solidariedade. Esquecemo-nos que programar é ouvir o mundo, cheirá-lo, perguntar-lhe o que precisa. Esquecemo-nos que o Medium is not the only message (perdoa-me McLuhan, sei que estarias a meu lado!) nem a message é uma questão de calendário cumprido.
Veio dizer-nos que muito mais grave do que qualquer circunstância, é a nossa estupidez crónica, a nossa tendência para arrastar um período de nojo e negação. O que fazer, se somos todos tão só e mesquinhamente humanos? Veio dizer-nos que mais duro do que a morte será a permanente insanidade física e mental em que podemos passar a viver. Veio avisar-nos de que vamos sentir falta destas tantas coisas de que não precisamos, enquanto vivemos fechados em casas rodeadas de tanto objeto útil.
Veio, por fim, relembrar-nos: um gesto artístico faz mais pela liberdade de um espírito encarcerado do que uma democracia cheia de truques como os que vamos praticando.
Veio dizer-nos: oxalá tenhamos sorte, e que aquele que cria continue a criar, mesmo sem teatros e sem livrarias, sem técnicos e sem editores, sem acesso a espaços públicos, em breve sem pão na mesa, porque não lhe ligámos nenhuma. Oxalá a nossa mente continue a sonhar com um futuro melhor e não dê a volta, regressando à lei da selva.
Veio dizer-nos: porque não votamos já um estatuto do artista que defenda esta profissão de risco tão vital para a nossa sociedade?
Porque não criamos uma bolsa para artistas que queiram dedicar-se agora, já, a pensar e a reagir a estes tempos, enquanto garantimos que aqueles que não o podem ou não o conseguem fazer fiquem em casa, e pausem, desfrutando do silêncio reparador do futuro? Porque não apoiamos o sector cultural ou agrícola com o mesmo afinco com que apoiamos o turismo ou os bancos? Porque se reflete sobre a sustentabilidade dos artistas com a desconfiança de quem convida um ladrão a entrar em casa?
Este vírus não nos pede para aceitar um estado de guerra, nem mesmo um de exceção. Pede-nos ação sem fogo de artifício.
E nada do que escrevo são sugestões radicais. Radical seria se nos tornássemos melhores pessoas, se redistribuíssemos a riqueza no mundo, se acordássemos de vez soluções eficazes e urgentes para as alterações do clima, tal como impusemos um estado de emergência num país. Radical seria se daqui saíssemos todos como o Cândido de Voltaire, continuando a acreditar no melhor dos mundos possíveis depois de vivemos o horror diário do contágio, da solidão e da morte. Radical seria termos todos direito a plantar e a cuidar do nosso jardim.
Se deveríamos levar “uma vida regida por princípios provisórios”, como diria Ulrich e como agora um contágio confirma, deveríamos estar sempre “conscientes de uma finalidade a ser alcançada pelos que vierem depois de nós”.