Conhecimento e dignidade, teoria e prática, o conhecimento daquilo que é e a realização do que deveria existir, interesse teórico e interesse prático da razão, são assim binómios inseparáveis da tradição e exercício da reflexão filosófica. É inteiramente nesta linha de rumo que se insere este breve, mas vigoroso, ensaio do jovem filósofo Ricardo Miguel, que mereceu em 2010 o Prémio Engenheiro Fernando Barreiros Marques, instituído pela cátedra “A Razão”, integrada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Gostaria de propor ao leitor aquelas que me parecem ser as três razões principais que tornam este breve ensaio num objeto de leitura inteiramente merecedor do tempo e da atenção que o público lhe queira dedicar. São elas: o alargamento da interrogação crítica; a coragem de viver de acordo com as faces da verdade que o inquérito racional vai revelando; e o desafio de uma solitária, mas também solidária, conversão interior.
Alargar o “espanto filosófico”
A investigação de Ricardo Miguel consiste num notável exercício do alargamento do “espanto filosófico” para um domínio aparentemente inesperado, a saber: o dos nossos hábitos e padrões alimentares. O espanto em filosofia significa, neste caso, inquietação ética. O autor, seguindo uma tradição filosófica que vai de Plutarco a Peter Singer, passando por Bentham e Schopenhauer, vai transportar para o domínio da alimentação, das refeições de cada dia, uma meditação sobre os valores e os fundamentos.
Sabemos que existem hoje numerosos argumentos e pesadas razões, algumas de âmbito ambiental e até de segurança alimentar e estratégica, que incitam a dietas com muito menor teor de carne, e maior riqueza e diversidade de cereais, legumes e frutos. Mas esta não é uma obra sobre o desenvolvimento sustentável na agricultura, e ainda menos uma proposta de divulgação dos méritos da dieta vegetariana, nas suas diversas variedades.
O que este ensaio nos propõe é a revelação do que permanece silenciado na falsa neutralidade moral da alimentação: a manifestação das falácias e pseudo-argumentos que nos protegem contra o que o autor, seguindo uma terminologia com menos de meio século, designa por “especismo”, ou seja, um preconceito que confere à nossa espécie privilégios sobre todas as outras, baseados não em princípios sólidos, mas no puro primado da força nua e crua.
À altura da verdade
A compreensão da ausência de fundamento suficiente para justificar a “alimentação humana padrão”, caracterizada pelo consumo de carne de animais, segundo o autor conduz o leitor ao teste de coragem de seguir, até ao fim, o encadeamento do discurso racional; isto caso se queira manter no quadro de uma vida pautada pela coerência entre ideias e ações, valores e comportamentos. Estar à altura da “verdade”, como escreveu Nietzsche, não é uma questão de certeza, mas sobretudo uma questão de coragem.
Finalmente, esta obra convida os leitores a ponderarem um desafio. Não se trata de uma revolução política, ou de uma mudança que envolva multidões ou sujeitos coletivos. Trata-se, antes, daquilo que Ricardo Miguel designa como “reorientação da razão”. Ousar introduzir uma mudança na vida de cada um, a partir do fio frágil da meditação racional. Sem alardes.
No fundo, trata-se de pensar a razão humana, não como aquele muro atrás do qual a humanidade sempre se protegeu da crueldade imposta pela nossa dominação sobre as outras criaturas viventes, mas como uma ponte estabelecendo ligações e intercâmbios entre todos os seres irmanados pela capacidade de sentirem dor e prazer. Nessa medida, este ensaio repensa, no mesmo gesto, a universalidade da razão, e refunda a comunidade ética que a partir dela se poderá estabelecer numa solidária amplitude que apenas nos é dado pressentir.