Opá, eu ia fazer 13 anos quando se deu o 25 de abril. Dizem que Portugal não era um país rico em 1974, e eu sei que não era um país rico, mas portou-se como rico, em 1974, porque me ofereceu uma revolução quando eu já me contentaria com um pónei, uma bicicleta ou, simplesmente, um passe para ver quatro filmes no Cinema Império. Os meus pais eram pobres e forretas, a pior das combinações, e não me queriam dar um presente catita pelos meus 13 anos, logo a idade com que em tantas culturas um jovem é iniciado no mundo adulto – ainda não “um homem” mas já “um homenzinho”. A minha mãe desculpava-se com as aulas que tinha de dar, o meu pai estava em África, e eu já me conformara em não ter nem pónei nem bicicleta, nem sequer o passe para quatro idas ao Império.
Por sorte eu já andava sozinho nas ruas e frequentava os “piolhos”. Na altura havia muitos em Lisboa, só na Baixa eram quatro: o do Coliseu, o Animatógrafo, o Olympia, o Salão Lisboa. Para marcar o lugar no intervalo das sessões contínuas, uma pessoa colava com cuspo o bilhete às costas da cadeira ou então atava um lenço ranhoso ao braço da cadeira (convinha ser ranhoso, para ninguém o roubar.). Eu desde os seis que andava sozinho nas ruas, Lisboa era assim naquele tempo, pelo menos na Pena, ali mesmo por cima do Rossio, com vista para as chaminés do palácio da Independência, onde era a Mocidade Portuguesa, com os seus calções castanhos e a saudação de braço esticado. Lisboa, pá? Era um filme antigo: as peixeiras subiam descalças a calçada, apanhávamos caranguejo no Cais do Sodré, o funileiro passava a assobiar, e o amolador, e o senhor Bento (o carvoeiro galego) estava sempre aberto caso fosse preciso petróleio para o fogão, e havia a capelista, a drogaria, os queijeiros da Rua Gaspar Trigo, a casa da Amália na Rua Martim Vaz, o convento. A guerra era longe e ainda não era problema meu, ainda tinha mais cinco anos antes de pensar fugir ou ir.
Era uma infância gira: parada no tempo, cristalizada numa noite de cristal. Ainda hoje, quando vejo um filme italiano ou francês dos anos 20, 30 digo: “Olha, a minha infância”. Tinha o seu quê de interessante, ser miúdo num país fora do tempo. Um pouco como viver no campo quando se é criança. Aos 13 anos, contudo, um adolescente começa a precisar de outra coisa, pá, senão mirra. E foi essa outra coisa que o meu país me ofereceu.
Uma manhã, estremunhado, o meu primeiro sentido disse-me que tinha acordado tarde. (Há quem lhe chame sexto sentido, para mim é o primeiro.) E a minha mãe continuava em casa, e disse que hoje não havia escola, diziam na rádio, não se percebia bem o que estava acontecer, mas havia soldados nas ruas. Eu vesti-me logo e, apesar dos protestos dela, saí à rua, prometendo (ou seja, mentindo) que teria cuidado. Das escadinhas por cima das chaminés do palácio da Independência via-se a confusão no Rossio. Não irei jurar que àquela hora já havia chaimites. Horas mais tarde, de certeza – eu próprio andei à boleia num. Mas de manhã? Não posso garantir que a minha memória não esteja a inventar coisas. (Têm a mania de fazer isso, as memórias.) Estava a caminho do Terreiro do Paço quando soaram tiros. Abriguei-me numa loja da Rua do Ouro. Penso que os tiros foram mais para proteger os civis. Não sabia ainda que quatro iriam ser mortos naquele sítio que agora é um condomínio. Nos dias seguintes foi uma festa. Nunca mais vi gente tão gente e tão tanta e tão tão feliz.
A caça ao pide também teve a sua graça, porque é sempre divertido ver o medo apontar o nariz na direção de quem até então o comandava. E que maravilha aquele 1º de Maio, Almirante Reis acima, de mão dada com a minha mãe, eu que já não tinha idade para lhe dar a mão mas, naquele dia, lhe dei a mão. Foi o primeiro dos três momentos mais religiosos da minha vida – e o único que tive enquanto filho e não enquanto pai. Estou, ainda hoje, grato ao meu país: uma revolução, quando se tem 13 anos, é mesmo um presente do caraças. Obrigado, pá. Naquele dia estiveste bem.
Estivemos todos.