JL: Quais são as ideias-chave deste Tratado Político?
Diogo Pires Aurélio: Espinosa está na génese da democracia, tal como ela é entendida contemporaneamente. Muitos estudos encontram a sua origem na Grécia Antiga, outros no Cristianismo. Eu diria: convém não esquecer que a democracia não pode coexistir com um pensamento que hierarquiza os homens em diversas classes naturais, considerando que uns nascem para mandar e outros para obedecer. Para Espinosa, nenhum homem tem mais direito ao poder do que outro, nem por nascimento, nem por revelação divina. Esta afirmação da igualdade entre os indivíduos é, desde logo, um aspeto que o coloca no cerne da democracia como nenhum outro pensador antes dele. Depois, a defesa da liberdade de pensamento e de discussão. Não em termos utópicos, mas na base de que, sendo a democracia, a seu ver, o regime mais conforme à natureza do homem, só faz sentido se fomentar as condições para que cada um se exprima e manifeste em liberdade. Outra questão fundamental é que Espinosa refuta todas as conceções do poder como algo de transcendente aos indivíduos e à multidão, dizendo que o estado político é a continuação do estado de natureza. Ou seja, a natureza não prescreve e todas as formas de organização política são e devem ser precárias, no sentido de que não podem estancar a discussão permanente. O poder deve ser sempre alvo de discussão e, quando assim não acontece, significa que houve alguma instância que o capturou pela força ou pela violência.
Pode-se, então, dizer que o seu pensamento político foi revolucionário?
Sim, e não só o político. Na História do Ocidente, há dois pensadores malditos e, curiosamente, o segundo cita o primeiro numa altura em que já quase ninguém o fazia. O primeiro é Maquiavel, o segundo Espinosa. Pensaram ambos o ‘outro lado’ do político. Ao longo da História do Pensamento, o político foi tratado numa perspetiva ideológica, isto é, tentando ‘vendê-lo’ o melhor possível. E tanto Maquiavel como Espinosa espreitam o poder por detrás do palco, o que ele é na sua essência. Daí os seus livros terem sido sistematicamente proibidos. Além disso, não creio que se possa pensar a democracia ignorando as principais questões que ele coloca e a sua formulação. Por isso é um clássico. E só dessa forma autores como Antonio Negri (para nomear o mais conhecido) pensam sobre o texto de Espinosa como se se tratasse de um autor atual.
Traduziu este texto do original, em latim. Que dificuldades encontrou?
O mais difícil não foi propriamente a língua. Primeiro, porque o latim do século XVII não tem a dificuldade do clássico. Depois, porque Espinosa aprende tarde o latim e, embora o domine com precisão, não tem um vocabulário vasto. Estes foram os aspetos que correram a meu favor. A principal dificuldade foi mesmo o vocabulário político. A linguagem com que discutimos política hoje foi, grosso modo, inventada no final do século XVIII, com as revoluções francesa e americana. Acontece que essa linguagem contém termos idênticos aos de épocas anteriores, mas que têm significados distintos. Portanto, torna-se algo complicado traduzir uma obra que é pensada no interior de um determinado vocabulário político para uma linguagem política atual mantendo uma tradução o mais fiel possível à letra. Carolina Freitas
Espinosa,Tratado Político, tradução de Diogo Pires Aurélio, Temas e Debates, 224 pp, 17,90 euros