De tanto se falar dela e apregoar o que ela deve ser, a Escola Pública corre um risco sério, mesmo uma ameaça, de banalização e desvalorização aos olhos da sociedade, que a dá como adquirida e contingente, mas sem acrescentar valor às vidas das pessoas.
No entanto, hoje, mais do que nunca nas sociedades democráticas liberais, é necessário que cada pessoa saiba, para melhor o defender, qual o sentido da escola pública em democracia e como pode enfrentar os desafios, exigências e incertezas que se lhe colocam. Aqui ficam sete ideias para reflexão, discussão e ação consequente.
1. A educação como projeto público e bem comum da humanidade
A educação como projeto público e bem comum da humanidade é na escola que encontra a sua pedra angular, fundamental e fundadora do edifício social. O último relatório da UNESCO (2021), sublinha o papel da educação no reforço da democracia e propõe um novo contrato social alicerçado nos direitos humanos, nos princípios da não discriminação, da justiça social, do respeito pela vida, pela dignidade humana e pela diversidade cultural.
2. Aprender na escolae transferir para a vida em sociedade
Cada regime político e cada sistema económico e social quer uma escola que seja sua, sendo conhecida e reconhecida a importância que lhe é atribuída enquanto veículo, por excelência, de transmissão de valores que se querem a vigorar na sociedade.
O desafio da escola em democracia é consideravelmente maior do que noutros regimes: tem de formar cidadãos livres, autónomos e responsáveis que, simultaneamente, conseguem mobilizar competências relativas à participação na vida coletiva e à responsabilidade na construção do bem comum de forma solidária.
Não é por nascermos e crescermos em democracia que somos automaticamente democratas. Em democracia é preciso contar com todos os cidadãos em plena igualdade de direitos e respeito pela diversidade vivida na escola e na sociedade. Mas isto aprende-se!
Por garantir o acesso universal, é na escola pública que essa aprendizagem se faz e que a sociedade democrática se ensina, num exercício quotidiano em que os professores estão conscientes do seu papel de orientadores num processo contínuo de aprendizagem.
A escola pública é o instrumento mais importante e necessário de democratização da educação e da sociedade, através da discussão dentro das regras de convivência democrática, por oposição à escola tradicional, transmissiva, fechada, hierárquica e estática.
O papel e o mandato da escola pública na atual sociedade democrática implicam reforçar o estatuto da educação enquanto elemento de desenvolvimento e coesão social.
3. A democracia tem poucas certezas e muitos desafios
A natureza aberta e plural da democracia pode conduzir a entendimentos que dificultam a apropriação dos valores democráticos e que associam a escola democrática, diversa, aberta e plural, a uma suposta falta de rigor quando comparada, com a rigidez da escola tradicional.
A vivência democrática, porque munida de menos certezas tidas como absolutas e indiscutíveis, pode provocar um sentimento de insegurança e levar à procura de referências e soluções fundadas em seguranças e certezas, levando ao fechamento em vez da liberdade.
Dentro da escola democrática é necessário promover aprendizagens que permitam às crianças e aos jovens, num cenário de inovação e inclusão das diferenças, pensar de maneira autónoma, alimentando uma inquietação fértil, desenvolvendo uma cultura científica; valorizando o conhecimento; cultivando uma ética da discussão; sublinhando os valores, as representações e os conhecimentos que sustentam a democracia; mobilizando a argumentação racional na resolução de conflitos, consolidando o reconhecimento e a partilha de factos objetivos e não apenas opiniões; ajudando ao posicionamento no coletivo sem perda de identidade; vendo na incerteza uma inquietação positiva na busca do conhecimento.
Talvez parte da desconfiança em relação à escola encontre algum fundamento nesta oposição entre certeza e incerteza, entre o conforto da opinião e o desconforto da procura, mas entre certezas totalitárias e incertezas democráticas a escola não pode ficar refém de um movimento contrário à sua missão de questionamento da realidade e de abertura ao mundo.
4. Sucesso escolar, meritocracia e ameaça à democracia
O grande movimento de democratização e massificação, iniciado nos anos 60’ em alguns países da Europa ocidental, questionou uma escola que não era para todos. Portugal não fugiu a esta regra tendo o processo de massificação coincidido com o processo de democratização da sociedade e das suas instituições no período pós-25 de abril de 1974.
As exigências colocadas a uma escola fechada – em que o acesso não é universal e o insucesso escolar é elevado e determinado em parte pela origem social dos alunos; a ambição é limitada e a preocupação maior é fornecer conhecimentos instrumentais básicos e próximos das necessidades de uma economia pobre e sem grandes desafios coletivos ou individuais – são radicalmente diferentes das que se colocam a uma escola aberta ao mundo, cosmopolita, inclusiva e atenta à diversidade de públicos que a frequentam; promotora de estratégias pedagógicas que democratizem o sucesso, emancipando os indivíduos através do saber; produtora de conhecimentos e competências necessários ao bom desempenho profissional no mundo do trabalho atual e formadora de cidadãos capazes de participar de modo constante e consciente na construção e manutenção da sociedade democrática.
Investigações recentes demonstraram a existência de uma relação forte entre nível de instrução, adesão aos valores democráticos e confiança na ciência e nas instituições, mas para isso é preciso que a igualdade perante a apropriação do conhecimento dentro da escola seja vista como um direito de justiça social fundamental na construção da democracia.
Mas, a meritocracia fez caminho e instalou-se permitindo o desenvolvimento da convicção individualmente alimentada e socialmente partilhada de que a responsabilidade por um percurso escolar e profissional bem-sucedido repousa quase exclusivamente no esforço e capacidades individuais, dificultando durante muito tempo o questionamento sobre o funcionamento do sistema educativo e dos seus mecanismos de seleção escolar com efeitos posteriores na seleção social e no mundo do trabalho.
5. O igualitarismo ganhou à equidade e não promoveu a igualdade
A “tentação igualitária”, a cedência excessiva ao igualitarismo e a assunção de que só com métodos e conteúdos iguais se promoveria a igualdade criaram o problema: a escola igual para todos, não equitativa, esquecendo que a igualdade é um fim, não um meio.
A realidade complexificou-se pelo progressivo alargamento e inclusão da diversidade levando para a escola públicos que num passado não muito distante estavam afastados do contexto escolar.
É preciso garantir condições de acesso à educação com respostas diferenciadas à diversidade social, étnica, linguística, de saúde física e mental, cumprindo o princípio de educabilidade universal através de uma educação inclusiva.
Para além de democratizar e massificar o acesso é necessário democratizar e massificar o sucesso, sob pena de uma parte significativa de jovens marcados pelo insucesso escolar vir a engrossar as fileiras dos descontentes com tudo, começando na escola e acabando na sociedade, desconhecendo a importância do seu papel na consolidação da cidadania democrática.
As ideologias antidemocráticas e os populismos vários encontram aqui terreno fértil para crescer e ter público.
6. A aprendizagem da cidadania em Portugal: instrumentos de política Educativa
A democratização do acesso ao ensino após o 25 de abril de 1974 tinha, entre outros, o objetivo de fornecer a todos os indivíduos um denominador cultural comum.
As alterações curriculares introduzidas por Rui Grácio em 1975, conducentes à unificação do ensino, fundindo liceus e escolas técnicas, tiveram uma intenção política explícita dirigida à escola para formar cidadãos democratas que iam ajudar a construir a nova sociedade.
Este desígnio também surge em dois documentos estruturantes da vida nacional e da educação: a Constituição da República Portuguesa (1976), que institui o regime democrático no País e a Lei de Bases do Sistema Educativo (1986).
Com mais ou menos insistência nestas questões em sede curricular do ensino obrigatório chegamos à história recente com a criação, em 2017, do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (PASEO) e da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC).
O PASEO constitui um quadro de referência em que assenta uma educação que se quer inclusiva, democrática, alicerçada no conhecimento científico e em valores sociais e democráticos. A ENEC é um dos instrumentos de concretização destes valores e de aprendizagem de uma cultura democrática em sede escolar.
7. A escola pública democrática e os seus agentes
Se entendermos ser necessário aprender a cidadania e a democracia dentro da escola pública, o “centro de treino” e experimentação da cidadania democrática, precisamos de professores formados de acordo com os princípios democráticos.
Os curricula da formação inicial de professores devem permitir levar para os contextos de formação estes conteúdos de modo a formarmos professores agentes da Democracia; promotores da Cidadania; abertos ao mundo e à diversidade; que se assumem como motores da inovação pedagógica e agentes de transformação social, que não se limitam aos saberes técnicos; que produzem conhecimentos partilhando-os ativamente com os seus alunos e cujo profissionalismo também se constrói em torno de uma consciência da diferença entre ser professor em democracia e ser professor num regime autoritário.
Se os professores não pensam o seu papel na sociedade, dificilmente estarão aptos a promover a mudança e a garantir que a escola pública é capaz de defender e manter os princípios, valores e práticas democráticas, sem doutrinamento, mas comprometidos com a convicção de que não há educação neutra nem apolítica, visto que está sempre imbuída de valores, sejam eles quais forem.