Nas artes e na literatura há várias formas de marginalização. A mais frequente é a desatenção. A mais perversa é a mitificação. Felizmente, de vez em quando, também há sacudidelas a acordar os sonolentos arrumadores das almas canónicas. Nem sempre funcionam (o sono é profundo) mas, pelo menos, deixa de haver as desculpas que nunca houve.
Foram publicados recentemente dois livros de dois incomparáveis poetas que acontece terem sido companheiros um do outro (e, já agora, meus) nos seus (nossos) anos formativos de assiduidade no Café Gelo, na segunda metade da década de 1950: Bonsoir, Madame, de Manuel de Castro, e A Morte Sem Mestre, de Herberto Helder. O Manuel de Castro deixou-se morrer aos 36 anos. O Herberto Helder permite-se continuar a estar vivo aos 83 anos. Não sei qual dos dois terá escolhido a via mais difícil.
A colectânea dos magníficos poemas do Manuel de Castro, de quase 250 páginas, foi publicada por benvinda iniciativa de jovens poetas numa edição de 300 exemplares sob a chancela conjunta de duas pequenas editoras, a Alexandria e a Língua Morta. É uma espécie de “edição de autor”, portanto, ainda que de um autor defunto fantasmaticamente recuperado por outros perto da idade que ele tinha quando morreu e que porventura nele se refletem.
Para a maior parte do público leitor, no entanto, Manuel de Castro é um desconhecido. E mal conhecido continuará a ser se, agora, os poucos que notaram a publicação dos seus poemas, mesmo com as melhores intenções continuarem a rotulá-lo como o surrealista tardío que ele nunca foi. Como também o Herberto Helder não é nem nunca foi, é claro. “Surrealista” é um rótulo preguiçoso que serve para meter nas prateleiras quem não pode ser facilmente arrumado, como esses dois poetas não podem.
Os seus temas comuns são os de sempre, mas como se encontrados pela primeira vez por cada um deles: o amor, a morte, a perplexidade de existir. Se alguma coisa, o Herberto Helder é um moderno clássico e o Manuel de Castro é um clássico moderno. Ambos são poetas metafísicos. Ambos reinventam a imagem da vida numa paisagem de deuses mortos. “Vamos brincar aos mortos perfumados/ com braçados de flores à luz noturna/ dum lago profundo e claro de verão”, escreveu o Manuel de Castro há muito tempo, com característica auto-ironia. E o Herberto Helder escreve agora, com inusitado sarcasmo contra si próprio: “lá está o cabrão do velho no deserto, último piso esquerdo,/ que nem o Diabo ousa/ ouvi-lo/ quanto mais os anjos do Senhor, os pintaínhos!”
Em contraste com o generalizado desconhecimento do Manuel de Castro (vejam no entanto o próximo volume da revista Ideia e o próximo número da Colóquio/Letras), o Herberto Helder é consensualmente considerado o nosso maior poeta vivo. E se a poesia fosse uma instituição hierárquica, a dar direito a um ceptro lá em cima, também eu diria que é sim senhor e que é muito bem feito para ver se aprende a ter juizo. As edições dos seus livros esgotam-se em poucos dias, são vendidas clandestinamente, os seus versos são imitados em sucessivas hipóstases descendentes pelos pequenos e médios poetas da nossa praça, e até o seu uso de pontuação é capaz de provocar delíquios orgásticos. Como, por exemplo, num afogueado comentário que alguém escreveu (juro que vi) quando da publicação do seu livro anterior, Servidões: “ai, aquele ponto e vírgula!…”
Deve ser por essas e por outras que o Herberto – o sempre afável e outrora sociável Herberto – para sobreviver como gente, e portanto como poeta, se tornou a certa altura num recluso. Se é que se tornou mesmo, e o malandro não anda disfarçado pelas noites em secretas vidas paralelas, a fazer das suas, de ceptro em riste. Que é como quem diz (cf. p. 36 de A Morte Sem Mestre), ou antes, como ele diz falando de si como se fosse outro: […] “só lhe falta saber tudo,/ só lhe falta a mulher para morrer com ele,/ a mulher que há nele, no fundo,/ a morta nele que de noite ressuscita,/ e pelo dia todo de cada dia da terra/ lhe rouba a alma/ o ceptro/ o segredo de ser senhor de tudo […]”.
A Morte Sem Mestre é um livro de dilacerante poesia e de extraordinária coragem. É o testemunho de uma alma que se recusa ser roubada, mesmo pela morte que não pode estar longe, escrito quando a morte já não pode ser oculta na linguagem em que se manifesta, por ser uma realidade cronologicamente próxima que é o fim de toda a linguagem e de toda a poesia. Mais ainda, é o livro de um poeta que recusa imitar-se a si próprio. Que desnuda a sordidamente gloriosa matéria humana que sustenta o mito em que o pretenderam neutralizar. É carne viva arremessada a canibais desdentados.
Para imitar a poesia do justamente glorificado poeta que até agora julgavam ser todo o Herberto Helder há por aí mais do que muitos proficientes praticantes. Aliás estão no seu direito e se calhar ainda bem. Imagine-se o que escreveriam se não o imitassem. Mas ele não se dá esse direito. O novo Herberto Helder é um mestre que começa de novo na velhice. Que inaugura uma nova linguagem num livro brutalmente jovem forjado pela morte em celebração da vida. Por isso é também um aviso aos incautos que vivem por empréstimo, aos poetas cautelosos que escrevem por imitação. A morte é sem mestre. O nosso amigo Manuel de Castro já tinha prevenido: “É perigoso dormir com rosas. Corram os estores.”