Durante uma semana perscrutámos as tendências do cinema grego através de quase duas dezenas de filmes recentes exibidos no histórico festival de Salónica, para atestar da sua saúde.
Entre as muitas características que Portugal e a Grécia têm em comum, desde a cultura mediterrânica à população, passando pelo nível económico, os países têm uma produção cinematográfica semelhante em termos de longas-metragens produzidas por ano. Há também uma prevalência do cinema independente, que é o único que tem um mínimo de visibilidade internacional. As referências, contudo, são diferentes.
Diferente também é o festival de cinema de Salónica, com uma dimensão e um orçamento superior a qualquer festival português e uma longevidade que o transforma em instituição, 65 anos (o mais antigo, em Portugal, é o Cinanima, com 48).
Cada edição é um acontecimento mediático nacional. O festival concilia o estilo de passadeira vermelha, convidando algumas estrelas, como Juliette Binoche ou Matt Dillon, com uma certa informalidade condizente com a aposta em cinema independente.
Nestes novos filmes gregos Lanthimos é referência recorrente, enquanto Angelopoulos mal se vislumbra e Costa-Garvas só com muito boa vontade
Mas vamos aos filmes. Orfeas Peretzis, o jovem realizador de Riviera, confessou-nos que uma das suas maiores inspirações era a obra de Pedro Costa. Não encontrámos evidentes pontos de ligação. Quando muito haveria para Miguel Gomes, mas pareceu-nos muito mais próximo de George Lanthimos, a maior referência do cinema grego contemporâneo.
Aliás, diga-se, pensando nos mais internacionais nomes da cinematografia grega, que Lanthimos é referência recorrente, enquanto Angelopoulos mal se vislumbra e Costa-Garvas só com muito boa vontade.
Riviera, filme passado numa das baías ao largo de Salónica, que fala da gentrificação nas entrelinhas, foi uma das mais agradáveis surpresas entre os gregos, apesar de não pertencer ao conjunto de três nomeados para a Competição Internacional. Na sua primeira longa de ficção, Peretzis faz um coming of age, destemido e estival, com poderosas metáforas e personagens bem construídas. O filme arrecadou três prémios.
Se é difícil dirigir animais e crianças, como será dirigir uma árvore? Foi o que perguntámos a Peretzis, que logo nos falou no moroso processo de transportar e caracterizar aquela enorme palmeira, elemento essencial para a narrativa, que acabou por ser o décor mais caro da produção. Valeu cada cêntimo, sem a árvore o filme não seria o mesmo.
É uma árvore que adivinha o futuro, respondendo silenciosamente às questões que Alkistis lhe coloca, como se fosse o oráculo. A árvore está a desfazer-se, o seu fim eminente, mas como se sabe, as árvores morrem de pé.
A árvore padece ao mesmo tempo que a infiltração numa das paredes da casa que a mãe pretende viver atinge dimensões monstruosas. Tudo o que cresce, ou decresce por fora, também se passa por dentro de Alkistis, personagem insurreta, meio punk, que não aceita a morte do pai (e sobretudo o fim do luto da mãe) e acaba por se envolver numa relação impetuosa com um homem adulto. O filme tem um mis-en-scéne deslumbrante e está cheio de imagens fortes, bem ao estilo de Lanthimos de Canino.
Algo de Lanthimos também tem Kyuka Before Summer’s End, filme de um realizador ainda mais novo, Kostis Charamountanis, que recebeu diversos prémios (o palmarés do Festival de Salónica é imenso). Numa história mais diluída, também em ambiente estival, mas em torno do lago que a Grécia divide com a Macedónia do Norte, o filme faz-nos acompanhar dois irmãos que encontram a sua mãe biológica.
A construção é sempre bastante etérea e difusa, mas não tanto como a de Arcadia, de Yorgos Zois, talvez a obra esteticamente mais estimulante e ousada, com algumas (poucas) reminiscências de Angelopoulos. Um transcendente, sobre o luto, com a presença de fantasma, num universo rico, com Eros e Thanatos caminham juntos. Sobretudo é uma obra difícil, mas com planos magistrais e um cenário o servente.
O luto, a morte, a vida para além da morte, parece ser uma questão recorrente no cinema grego, observada noutros filmes, como Penny Panayotopoulou, uma das raras cineastas gregas em concurso. Ou Maldives, de Daniel Bolda, em que esta mania da transcendência acaba por estragar uma longa bem filmada, cuja principal trama se centra num professor de música que vivia pacatamente, nas montanhas, com o seu cão.
Meat, de Dimitris Nakos, outra das obras mais premiadas, conta uma história mais prosaica, com uma sombra de drama social. Fala-nos de um albanês, empregado de um talho, a quem é pedido que, em troco de dinheiro, assuma a culpa de um homicídio cometido pelo filho do dono. Um dilema moral e ético com contornos socioeconómicos que marcam a realidade grega.
A questão da imigração é de resto um tópico importante, para um país que está a linha da frente no acolhimento de refugiados. Em Utópolis, assistimos a uma espécie de triângulo de relações e conflitos entre um migrante africano, um russo e um nacionalista grego, levados até a um limite.
Já em To a Land Unknown, filme do palestiniano Mahdi Fleifel, mas filmado na Grécia, é-nos mostrado, sem pudor, um reverso da moeda: a delinquência de jovens palestinianos que lutam pela sobrevivência ou por uma passagem para o centro da Europa nas ruas de Atenas.
Outro filme de um de um realizador palestiniano, Happy Holidays, de Scandar Copti, ganhou o prémio principal de uma competição internacional, onde também estava On Falling, da portuguesa Laura Carreira (Joana Santos ganhou o prémio para a melhor atriz).
De forma mais caricatural, The River, de Haris Raftogiannis, retrata um choque cultural, tendo como protagonista um engenheiro que tem como trabalho a colocação de autocolantes que afastam os pássaros da autoestrada e a sua paciente luta contra uma comunidade que montou o seu bairro de lata à beira da autoestrada e que se entretém a arrancar os ditos autocolantes. O plot promete mais do que aquilo que é capaz de oferecer.
Dentro das tipologias apresentadas há três filmes sobre realizadores a fazer filmes. Killerwood, de Christos Massalas, é o menos conseguido. The Philosopher. I Have Something to Say, de Stratos Tzitzis, que conta a história de um realizador e escritor que tenta editar um livro, tem a graça de terminar com o lançamento de um livro que realmente existe e se tornou um best-seller na Grécia.
O mais conseguido é The Sock, de Kyros Papavassiliou, filme de ritmo pausado. O início é forte e hilariante. O próprio realizador parte uma perna ao assistir a uma performance de uma artista alternativa. Restabelece a partir daí uma relação com a performer, mas também se aproxima de um primo, que se debate com uma escoliose múltipla, e por isso também vive numa cadeira de rodas.
Completamente fora dos eixos é She Loved Blossoms More, de Yannis Veslemes, um filme com pormenores gore, futurista e psicadélico, com elementos próximos de Jeunet & Caro. E houve ainda um filme de época, Giannis in the Cities, da veterana Eleni Alexandrakis, com alguns pormenores de interesse.
Do cinema grego que passou em Salónica – parte significativa da produção de ficção nacional – também há lugares para autênticos disparates, como Café 404, de Alexandros Tsilifonis, um Robert Rodríguez de terceira categoria, sem ponta por onde se lhe pegue.
E até para uma longa de animação futurista feita por computador, Magic Trap, de Nikos Vergitsis. Mas, nesse capítulo, diga-se sem pudores: a longa grega fica muito aquém das duas recentes longas de animação portuguesas. Mas, enfim, não estamos aqui a ver quem chega primeiro, o cinema não é uma modalidade olímpica