Muitas das imagens de Amália e de Carlos Paredes do nosso imaginário foram captadas pela sua objetiva. Também alguns dos mais impressionantes planos do nosso cinema, como de Belarmino. Augusto Cabrita é um dos nomes grandes da fotografia portuguesa, um “mestre da imagem”, sublinha Augusto António Cabrita (AAC). E quer no trabalho como fotógrafo, diretor de fotografia ou realizador, independentemente da escala ou do meio, “o seu olhar está sempre lá”, como nota Tiago Bartolomeu Costa, da Cinemateca: o olhar de “alguém que passou a vida a registar o que o rodeava, navegando entre a fotografia, o cinema e a televisão”.
A “dignificação” e “divulgação” do legado de Augusto Cabrita é o objetivo da investigação que o filho Augusto Cabrita Júnior, também fotógrafo, e o neto, Augusto António Cabrita, estão a realizar. Foi, de resto, AAC que assumiu a curadoria da exposição Um Olhar Inédito, que está patente no auditório municipal do Barreiro até 16 de março, celebrando o seu centenário de nascimento. São 128 as fotografias expostas, a maior parte delas apresentadas pela primeira vez. “Penso que será a maior exposição da sua obra já feita. Ele não procurava mostrar as suas fotografias, embora tenha feito uma dúzia de exposições, por exemplo no Museu Nacional de Arte Antiga, nos anos 60, e na Casa-Museu Carlos Relvas, nos anos 80”, diz AAC. “Apresentamos cerca de 70 por cento de fotografias inéditas, e com o que existe no espólio poderíamos fazer uma dezena como esta. Há todo um universo novo de Augusto Cabrita por descobrir”.
Milhares de imagens, provas vintage, toda uma panóplia de impressões fotográficas, diapositivos, mas também dezenas de manuscritos, textos pessoais, considerações e reflexões sobre a fotografia e o cinema e inclusivamente poemas estão a ser inventariados. “São muito interessantes, e a sua revelação vai permitir um ressurgimento do seu trabalho”, adianta AAC. Surpreendeu-o a “vastidão” e a “diversidade temática” do espólio. “Talvez porque não foi investigado a fundo a título póstumo, eu próprio tinha a ideia de que era muito territorializado, até pelo facto de a Câmara do Barreiro ter adquirido um conjunto de fotografias dele e de serem essas as imagens que mais circulam”, justifica. “Por isso, cresci com uma ideia um pouco limitada da obra do meu avô, sobretudo ao Barreiro, ao Tejo, mas de facto descobrimos que passa pelos quatro cantos do mundo onde esteve, neste processo maravilhoso que nos enche de orgulho”.
UM OLHAR MUITO ATENTO
Na Biblioteca de Marvila, em Lisboa, podem, entretanto, ser vistas até maio sete dezenas de fotografias inéditas de Augusto Cabrita, captadas nos bastidores da rodagem de As Ilhas Encantadas, de Carlos Vilardebó, de 1965, com Amália Rodrigues. A mostra, que celebra também o centenário, intitulada O Olhar Encantado, tem curadoria de Tiago Bartolomeu Costa (TBC) e realiza-se no âmbito do projeto FILMar da Cinemateca Portuguesa, tendo sido apresentada pela primeira vez no ano passado, no Festival de Vila do Conde. “É uma exposição que aproveita a descoberta, no espólio da família, de um conjunto de imagens que não se conheciam das muitas que fez durante as filmagens de As Ilhas Encantadas, que o projeto FILMar estava a digitalizar na altura e que entretanto foi apresentado em Lyon e está a circular pelas salas do país desde o início de fevereiro”, adianta o curador. “O trabalho de Augusto Cabrita no filme permitiu o encontro com Amália, o que mudou a vida dos dois, porque ele passou a ser o fotógrafo de Amália, em que ela depositava toda a confiança. E é o encontro entre o seu trabalho de diretor de fotografia e o de fotógrafo, revelando, mais do que uma atenção ao detalhe, um equilíbrio entre uma ideia de território e a presença da equipa de rodagem nessa paisagem inóspita”, que ele vai habitar com um olhar muito atento.
Tiago Costa frisa, por outro lado, que já se conheciam fotografias de Augusto Cabrita desse filme, mas a mostra dá a ver “o processo interno, privado” que levou a essas imagens. “Para além de sequências de diferentes momentos durante a rodagem, há também provas de contacto que mostram o seu processo de seleção dos tamanhos, dos ângulos com que se propunha contribuir para a construção de uma narrativa”, diz. “Podemos ver como, a partir de uma mesma imagem, pensava diferentes enquadramentos, e é a partir desse detalhe do que escolhe ou não revelar que podemos perceber o que Augusto Cabrita traz para o cinema, acompanhando o olhar dos realizadores com quem trabalhou, e foram muitos, mas também a dimensão pouco conhecida do seu trabalho enquanto realizador”.
UM FOTÓGRAFO INOVADOR
Augusto Cabrita nasceu a 16 de março de 1923 no Barreiro, e foi nessa cidade que cresceu e viveu grande parte da sua vida. Lá começou a trabalhar no escritório de uma empresa de família e, mais tarde, em meados dos anos 50, fez o seu estúdio fotográfico. O seu interesse pela fotografia manifestou-se, aliás, muito cedo, como salienta AAC: “Tinha 13 anos quando fez a primeira fotografia, numa viagem com um tio, aviador, sobrevoando a região”. No início dos anos 50, quando começou a “fotografar com preocupações estéticas”, participou em salões de fotografia e ganhou desde logo um primeiro prémio num deles, organizado pela Câmara do Barreiro.
Foi um autodidata, porém, “um falso intuitivo”, como dizia o cineasta Fernando Lopes. “Tudo o que fazia era com um grande conhecimento técnico, mas não fotografava de forma arregimentada a um cânone”, salienta AAC. “Não era, contudo, um fotógrafo experimental, mas tal como Eduardo Gageiro, em grande força, foi importante na passagem de uma fotografia que estava muito ligada aos salões e a representações fechadas para um fotojornalismo, afastando-se dessas conceções e procurando ir ao encontro dos acontecimentos”.
Como repórter trabalhou nas revistas Flama, O Século Ilustrado, ou Eva. “Contribuiu para uma fotografia mais moderna com um olhar inovador da estética fotográfica em Portugal”, sustenta. “E bebendo um pouco das vanguardas internacionais, sendo Bresson a sua grande referência”.
A sua mestria teve um grande reconhecimento, desde as imagens da paisagem do rio Tejo e da sua margem Sul até ao modo como retratou figuras como Amália, Carlos Paredes, Simone de Oliveira ou Luiz Goes, para quem fez capas de discos, mas também artistas internacionais como o pianista Keith Jarrett, de quem recentemente se descobriram negativos no espólio, tal como de Edu Lobo, Gal Costa ou de Vinicius de Moraes, numa despedida na estação de Santa Apolónia, como revela AAC. “Num texto que encontrámos, Gérard Castello-Lopes referia-se precisamente à altura em que ele ia fotografar no Luisiana, do Luís Villas-Boas, e perguntou-lhe como fotografava com aquela fumarada, se não ficava tudo desfocado. Mas depois, quando viu as imagens que o Augusto Cabrita tinha feito, reconheceu nessa crítica que eram algumas das mais belas fotografias desses músicos”.
E acrescenta: “Augusto Cabrita fazia milagres. Às vezes com uma atitude pouco ortodoxa, com o cigarro sempre na boca, mas era um artista assinalável. E fiquei impressionado com a correspondência que tinha com tantas figuras da cultura, além dos seus grandes amigos António Victorino d’Almeida, Fernando Lopes ou Dinis Machado, que era casado com a sua irmã”. Era um homem de cultura que viveu por dentro do meio cultural. “Tem sido um enorme enriquecimento para nós, em várias frentes, trabalhar o seu espólio”.
FULGOR DO CINEMA
A sua arte tornou-se notória também no cinema, desde os filmes Belarmino, do realizador Fernando Lopes, de 1964, em que foi diretor de fotografia, ou Catembe, de Manuel Faria de Almeida, filmado em Moçambique. Antes, tinha feito Improviso sobre o Algarve, em 1960, Macau, em 1961, a que se seguiram Viana e o seu Termo, Na Corrente, A Viagem, A Nova ou Açores, Ilhas do Atlântico, entre outras curta-metragens e documentários, uma faceta menos conhecida do seu trabalho, porventura por muitos filmes corresponderem a encomendas institucionais, mas que têm “uma dimensão, um fulgor de cinema”, como faz notar TBC.
Na exposição O Olhar Encantado mostra-se, por exemplo, Hello Jim! (1970). “Foi-lhe encomendado para apresentar Portugal enquanto destino turístico e utiliza as comunicações, os telefones da altura, para dar conta de que é um país aberto e preparado para receber os seus visitantes. No entanto, à luz dos dias de hoje, é profundamente irónico, até porque vai denunciando os problemas que isso irá trazer”, sustenta TBC. “Noutro filme, O Mar Transporta a Cidade, também uma encomenda de empresas de estiva, e ele trabalhou muito as duas margens do Tejo, a zona industrial, pelo modo como as imagens são montadas, o texto é utilizado, os ângulos são propostos, percebe-se também que ele está a denunciar as condições de trabalho dos estivadores”.
A digitalização que foi feita dos filmes, que eram pouco conhecidos, possibilita pôr em evidência “uma vontade de pensar como a imagem pode servir um discurso”, avança ainda o curador: “E no caso de Cabrita, as imagens servem para expor os paradoxos e contradições dos discursos oficiais”. São filmes, tal como as fotografias, que, segundo ele, devemos olhar com tempo, para perceber as suas “diferentes camadas”. “Ele tinha uma grande consciência de que as câmaras falam. Daí que as suas imagens, os seus filmes, reclamem tempo, agora já histórico, mas que observa as geografias, a integração das pessoas nas paisagens urbanas e não urbanas. Ele constrói a partir da realidade que tem à sua frente uma narrativa visual, e o modo como se posiciona faz com que tenha diferentes leituras”, sublinha. “Não é um fotógrafo que se limite a fazer um simples registo, propõe diferentes fixações e interpretações, como podemos ver no seu processo de trabalho nesta exposição”.
Numa das sessões de O Olhar Encantado, exibem-se filmes relacionados com As Ilhas Encantadas, com Amália Rodrigues e o fado. Um deles de Cabrita, uma encomenda do Instituto da Vinha e do Vinho, um teledisco da canção interpretada por Amália “Oiça Lá, ó Senhor Vinho”. Mas também um outro, realizado por Carlos Vilardebó, da primeira vez que Amália canta o fado “Gaivota”. Numa outra sessão, apresenta-se nomeadamente Os Caminhos do Sol, que Cabrita correalizou com Vilardebó. E numa terceira sessão, vão passar filmes sobre a zona industrial, o trabalho de estiva. Dão-se a conhecer ainda dez filmes selecionados no arquivo da RTP, parceira da exposição, do vastíssimo legado televisivo de Augusto Cabrita, das séries “Melomania”, de João de Freitas Branco, e “Vamos Jogar no Totobola”.
Em março, na Cinemateca, no ciclo que lhe é dedicado, apresentar-se-á ainda Hello Jim!, que já passou na retrospetiva de Fernando Matos Silva em janeiro, por escolha do cineasta, O Mar Transporta a Cidade, Os Caminhos do Sol e Açores, Ilhas do Atlântico, entre outros. “Quer sejam encomendas institucionais, filmes para a televisão, fotografias de rodagem ou direção de fotografia, há uma coerência na forma como Augusto Cabrita olha para o que tem à frente da objetiva, e é isso que marca um discurso artístico”, afirma TBC. “A exposição não esgota de maneira nenhuma o seu olhar, mas procuramos perceber como construiu o seu discurso”.
SINTONIA PERFEITA
Augusto António Cabrita faz questão de sublinhar a importância do trabalho da Cinemateca na digitalização dos filmes, destacando Tiago Bartolomeu Costa e o projeto FILMar. “Se tinha havido um tímido trabalho de investigação a nível fotográfico, ainda mais existiu a nível cinematográfico”, diz. “Já depositámos bobines no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento para que sejam identificadas e iniciados processos de inventariação e digitalização. E tenho esperança de que a RTP abra a sua caixa-forte, porque são pouco recetivos a esse tipo de coisas, ao contrário da Cinemateca, para onde devia ser passado todo esse material, muitas horas de película que deixou, para que pudessem ser vistos mais filmes dele, com qualidade, nos cineclubes, em efemérides”. Das centenas de curtas que realizou, apenas uma pequena parcela está digitalizada, como salienta AAC.
Foi logo no arranque das emissões televisivas em Portugal, em 1957, que Augusto Cabrita começou a trabalhar na RTP, tendo constituído a primeira equipa de imagem, e “deu tudo a essa casa”, assevera AAC. Fez reportagens memoráveis, como a cobertura da visita da rainha Isabel II a Portugal logo em 1957, o centenário do santuário de Lourdes, o terramoto de Agadir.
Era, ainda, imenso o gosto de Cabrita pelo cinema, pelas possibilidades da imagem em movimento, em relação com a música. “Ele era um grande melómano e achava muito importante essa relação para chegar à sensibilidade das pessoas e emocioná-las”, diz AAC. “Tinha uma memória musical muito intensa, e quando pensava fazer uma imagem, surgia-lhe logo a música perfeita para a acompanhar. Numa época em que já víamos boas imagens e argumentos interessantes no cinema europeu, nem sempre se usava bem a música, mas Augusto Cabrita introduzia sempre a música certa para a imagem certa. Foi isso que acrescentou ao cinema português, uma grande cultura musical e uma continuidade entre imagem e som. Quando vemos as suas curtas, é impressionante verificar essa sincronia ao segundo”.
De resto, Augusto Cabrita tocava piano e outros instrumentos. Costumava mesmo ir tocar nos estúdios da Valentim de Carvalho, e chegou a acompanhar gravações. “Quem o conheceu, diz que se não tivesse sido fotógrafo e homem de cinema teria sido certamente pianista”, assevera AAC. “Vinha de uma família muito recetiva às artes, a mãe tinha o curso de piano, a irmã mais nova, Dulce Cabrita, foi cantora no coro do Fernando Lopes-Graça, e havia lá em casa um piano e toda uma intersubjetividade musical”.
Além da relação perfeita entre som e imagem, AAC destaca ainda um lado experimental no cinema de Augusto Cabrita: “Ele tem curtas-metragens que podiam ter sido feitas agora por artistas independentes, underground, quase proto psicadélicas, como uma das que vai passar na Cinemateca em que filma um farol”, adianta. “São muito arrojadas e com um ritmo de passagem de planos muito enérgico, não ficava muito tempo num mesmo plano, fazia muitos travellings, e daí que seja fácil identificar os seus filmes. Não é de todo um argumentista, apesar de termos descoberto muitos manuscritos e até poemas no seu espólio. Mas gostava de experimentar e inovar, e deu um contributo importante ao Cinema Novo”. E nota: “Ele consegue criar uma certa magia animista em algumas curtas, por exemplo quando filma um malmequer num charco ou um girassol junto a uma fábrica. É fascinante”.
A partir dos anos 70, por outro lado, chama ainda a atenção AAC, Augusto Cabrita pôs em segundo plano a sua máquina de fotografar e trabalhou sobretudo a nível do design gráfico. “Ele é muito conhecido como fotógrafo, mas muitas pessoas não sabem que nos anos 80 dedicou-se muito a fazer arranjos gráficos de obras de artistas que eram seus amigos, nomeadamente do escultor Martins Correia, do Artur Bual, também para o Eduardo Gageiro e para a Ana Esquivel”, frisa. “A certa altura, pensou que já tinha feito o que queria fazer na fotografia e quis trabalhar em design, embora continuasse a filmar na televisão”. Um trabalho que não terá sido alheio à “generosidade” que o caracterizava: “Era um bonacheirão, com um grande humanismo, todas as pessoas o apreciavam”.
Augusto Cabrita também publicou livros de fotografia como 50 Anos da CUF no Barreiro, Portugal, um País Que Importa Conhecer ou Setenave – Estaleiros Navais de Setúbal. E fez fotografia para o Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto, com Homem Cardoso, e As Mais Belas Vilas e Aldeias de Portugal e Os Mais Belos Castelos e Fortalezas de Portugal, com textos de Júlio Gil.
Da investigação que filho e neto estão a fazer, vai sair uma coleção de livros de fotografia de Augusto Cabrita e será lançado um catálogo biográfico da exposição Um Olhar Inédito. A ideia é que a obra seja conhecida e que académicos se interessem por estudá-la e interpretá-la, trazendo novos olhares e leituras. Uma obra, assegura AAC, bem mais “heterodoxa” do que é conhecido e que importa compreender em toda a sua amplitude.J