O trabalho de Mendes mescla o pessoal e o profissional, o artístico e o político, o contemplativo e o interventivo. E usa um desenho de base realista que depois “dilui”, com traços mas sobretudo sombras, sublinhando na perfeição a incerteza dentro da certeza que uma história baseada em factos reais evoca.
A “Diário Rasgado” sucedeu-se “Anos Dourados” (2013), uma recolha de ilustrações realizadas ao longo de vários anos em que a notável base realista do traço de Marco Mendes é mais visível, e as vistas arquitectónicas lembram mesmo Paul Madonna. Há narratividade em cada desenho, mas a repetição de figuras humanas sentadas/dormindo é também evidente, e este livro entende-se melhor como resultado do sucesso do anterior (aconteceu o mesmo com Ricardo Cabral, outro excelente autor), sendo de realçar o interessante texto final de Pedro Moura, que, por algum motivo, o design parece querer assassinar.
Talvez seja pois de encarar o mais recente “Zombie” (Mundo Fantasma) como o verdadeiro sucessor de “Diário Rasgado”. Embora esta seja uma narrativa única, e não um conjunto de histórias curtas, o tom é o mesmo, misturando elementos profundamente pessoais com, neste caso, ativismo gráfico anti-indiferença que o autor e os seus amigos praticam na noite do Porto. E que, num dos momentos do livro, choca com um dos adormecimentos mais dramáticos de todos: a Praxe Académica. Não enquanto conceito de introdução a um novo mundo localizada no tempo (início do ano letivo), mas na sua prática quase permanente, e que implica a aceitação acrítica de práticas hierárquicas; o contrário do que se pretende do ponto de vista educativo.
Na verdade o livro é acompanhado por uma espécie de reportagem ilustrada, em que Mendes complementa um texto de Samuel Buton. O qual, sem ser particularmente inovador, tem o mérito de contrastar de forma estruturada as duas realidades: submissão ao “status quo” e rebeldia, vividas por diferentes grupos de pessoas num mesmo espaço-tempo universitário, que permite (estimula?) ambas as atitudes. Algo que a BD de Mendes nunca poderia fazer, porque tem o mérito distinto de contextualizar o debate num percurso pessoal. Onde um encontro conflituoso com alunos praxistas é apenas uma cena de um livro rico em eventos com consequências: de doenças na família a hesitações profissionais e de relacionamentos, a momentos de humor, amizade, preguiça e hedonismo. Coisas que ficam (muito) bem numa vida, mas não necessariamente num ensaio. Ou seja, aqui o “pessoal” e o “social” intersetam (ou substituem) os mais comuns “local” e global”.
Para além de um desenho que parece sempre hesitar entre revelar e esconder são essas pontes inteligentes que Marco Mendes articula entre si e o mundo em “Zombie” que dão uma qualidade superior ao seu trabalho. Embora por vezes soçobre numa angústia de inutilidade, que parece mesmo questionar se as “regras” da rebeldia serão assim tão diferentes das da praxe. E deixando ao leitor a possibilidade de decidir a quê (ou a quem) o título se refere.
Zombie. Argumento e desenhos de Marco Mendes. Mundo Fantasma. 72 pp., 17 Euros.