Uma obra de arte que tenha uma clara e assumida missão pedagógica ou funcione enquanto denúncia vale “mais” ou “menos”? Nem uma coisa nem outra, deveria ser a resposta automática. A mensagem é uma coisa, a obra é outra. Se a coisa é boa a mensagem torna-se irrelevante, e uma boa e generosa mensagem nunca é resgatada por uma má obra. É o que alguns dizem. Muito bonito, só pena não ser verdade. Tal como sucede no ultrapassado binómio Genes/Ambiente (Nature/Nurture) não há partes, há sempre um todo. Por outro lado: nunca há obras totalmente neutras, caso o fossem é provável que perdessem interesse.
Vem isto a propósito de Psychiatric Tales, o livro de estreia do autor inglês Darryl Cunningham. Embora este não seja totalmente correto (o livro tem mais reflexões do que histórias) a melhor definição é dada pelo subtítulo: “eleven graphic stories about mental illness”, focando diferentes tipos de doenças mentais, de como afetam os pacientes e são vistas “de fora” pelas pessoas “normais”. Retirada da experiência pessoal do autor, quer enquanto auxiliar num hospital psiquiátrico, quer enquanto paciente, este é mais um livro encarado claramente enquanto terapia autobiográfica, à semelhança de Stitches de David Small ou The Impostor’s Daughter de Laurie Sandell.
Não me parece coincidência que obras recentes com vertente de reflexão pessoal/ajuste de contas tenham tanta preponderância na lista das 1001, mas antes uma clara tendência valorizada pela crítica enquanto maneira respeitável de credibilizar a banda desenhada junto de um público (e sobretudo uma tradição crítica) claramente desconfiado quando às suas potencialidades. Uma tendência que pode ter origens anteriores mas cuja generalização vem, claramente, na senda do sucesso (não espartilhado apenas no mundo da BD, lá está) que foi Maus de Art Spiegelman ou, mais tarde, Persepolis de Marjane Satrapi.
Psychiatric Tales tem vários capítulos, mas a sua organização não é linear, resumindo um conjunto de reflexões sobre a doença mental. Há histórias individuais de pacientes perdidos na sua doença (lembram os narrativas de Duplex Planet ,de David Greenberger, recolhidas em lares da Terceira Idade), trechos coletivos sobre diferentes patologias e suas características clínicas (demência, bipolaridade, esquizofrenia), relatos históricos sobre sofredores famosos e o valor da doença enquanto motor de criatividade, denúncias quanto aos estigmas sociais impostos aos pacientes (não famosos), e, finalmente, discussões sobre a natureza biológica da doença mental e alternativas terapêuticas. Desse ponto de vista este é um livro que interessará a profissionais da área, ou a quem com ela tenha uma relação pessoal empenhada. Se alguns pontos de vista do autor parecem polémicos, são estes leitores que os poderão discutir. Interessante é ver como Darryl Cunningham consegue resumir informação, evitando tornar a mensagem mais pesada do que aquilo que, por natureza, poderia ser. Para isso conta também o uso inteligente de um desenho anguloso (ecos de Paul Grist), de colagens fotográficas para transmitir informação que se pretende mais “real”, e, sobretudo, de contrastes surpreendentes de preto e branco num tema que, paradoxalmente, é tudo menos isso. Sempre que há um momento mais tenso ou é necessário um ponto de exclamação surge uma vinheta (figurativa ou abstrata) em que as águas se separam e as duas cores se definem com uma clareza cristalina ou trocam entre si, sem traços a mais, sem sombras. O leitor sente o talento por detrás da pedagogia.
Não é para se estragar qualquer surpresa que se refere aqui que na última história Darryl Cunningham se assume, ele próprio, enquanto doente mental. Primeiro porque não é surpresa nenhuma para o leitor. Depois porque não há propriamente uma história linear no livro, e só faz sentido omitir pormenores se estragarem por completo a fruição de algo (por exemplo, revelar os truques narrativos nos filmes de M. Night Shyamalan), o que não é o caso. Claro que há uma questão que fica por responder: saber que o autor está muito mais próximo do tema do que o que revela no início modifica o valor do livro? Torna a mensagem mais poderosa para leitores interessados? Ou menos relevante para leitores cínicos? Voltamos à discussão inicial. Não devia fazer diferença nenhuma, mas é óbvio que faz.
Psychiatric Tales não é um grande livro, mas é um livro interessante e honesto que denota talento na transmissão empenhada de uma mensagem. O modo como o leitor se posiciona perante essa mensagem (quer na forma, quer no conteúdo) vai condicionar a sua abordagem ao livro, e a opinião que dele formará. Mesmo que nunca haja leituras verdadeiramente neutras não é isso que se deve pretender. Mas, lá está, neste caso é o que é.
Psychiatric Tales, Darryl Cunningham, Bloomsbury. 2010-11. (15/20)