Que o projeto de António Jorge Gonçalves Subway Life não é BD percebe-se logo: é editado pela Assírio & Alvim… A ideia é simples: sentado numa carruagem de metro em dez cidades distintas o autor propõe-se desenhar quem se instalar aleatoriamente no seu campo de visão. Rapidez e escolhas instintivas na captura de uma essência; ou também, como fazem notar a Gonçalves em Nova Iorque: desenho figurativo de modelos variados sem pagar a nenhum. Para além de revelar o esqueleto-base do traço do autor (como nas experiências de 24 hour Comics, em que uma BD tem de ser planeada e realizada num só dia), esse mesmo traço funciona pois como uma espécie de sondagem gráfica sobre as populações de diferentes cidades. Bom, não exatamente: sobre um certo tipo de cidades, e sobre a população que usa um certo tipo de transporte público, subterrâneo. Aqui a razão será mais prática do que metafórica: para além de juntar pessoas que apenas ali se encontram, é mais fácil ficar longas horas no metro, e não há riscos meteorológicos. Para além do interesse no dissecar do traço (onde há mais detalhe, onde falta), este é o tipo de livro em que, presumindo a total honestidade do autor, se tenta sobretudo interpretar para além do que lá está. Por entre a tentativa de reconhecimento de estados de espírito e emoções nos retratados (furando a famosa “neutralidade distante” dos transportes públicos), as perguntas que assomam têm a ver com as cidades invisíveis, representadas por um único desenho panorâmico, pelos mapas das redes de metro, e sobretudo pelos seus habitantes acidentais “suspensos” no ar (não se desenham os bancos). Há cidades mais homogénas do que outras? Mais identificáveis? Ou o urbanismo que implica uma rede de metro e a imigração globalizada são também visíveis do subterrâneo? Mesmo que seja mais gratificante ver um autor como António Jorge Gonçalves noutro tipo de projectos, Subway Life tem algumas vidas para além daquilo que aparenta a uma primeira vista.
O contrário é verdade de NewBorn: 10 dias no Kosovo, o novo livro de Ricardo Cabral (ASA). Diário foto-ilustrado de uma viagem, o livro vem (concetualmente) no seguimento da notável revelação que foi o anterior Israel: Sketchbook. A visita foi realizada como preparação de um álbum para o mercado francês (entretanto abortado), acabou por sair este livro, não previsto. Cabral não é um jornalista gráfico como Joe Sacco. Não é, nem tem nada que ser. É antes um turista curioso, que tenta sempre fugir ao óbvio. E o retrato que faz do Kosovo tem o mérito de focar a normalidade do dia a dia, não numa estilização de memórias dolorosas e conflitos latentes por resolver. Só que o investimento colocado em Israel foi claramente superior ao detectado aqui; algo que é evidente na preparação, conteúdo e voz do autor. E, inevitavelmente, no resultado final. Falar numa eventual maior “espontaneidade” é contraproducente, o fulcro deste tipo de livro não passa por aí. A questão é que Ricardo Cabral tem demasiado talento para este não surgir, mesmo num trabalho menos pensado. Particularmente notáveis são as “sequências cumulativas” em que um mesmo local é constantemente revisitado; e o uso de sobreposições “transparentes” para glosar movimento, imaterialidade, precaridade, dúvida. Não sendo o segundo trabalho do autor (que já assinara o muito conseguido, em BD “clássica”, Evereste) NewBorn tem sinais daquilo que em música se convencionou chamar o “Síndroma do Segundo Disco”, no sentido em que o autor duplica o formato e estilo de Israel com demasiado à-vontade, mas num registo menos sólido e que pouco acrescenta em relação ao trabalho anterior. É pois um ritual de passagem, cumprido. Resta o futuro, porque com grandes dons chegam maiores responsabilidades. António Jorge Gonçalves já o é, Ricardo Cabral tem o potencial para ser um grande autor. De BD? De ilustração? Do que ele quiser. Que utilidade poderá ter uma classificação tão redutora?
NewBorn: 10 dias no Kosovo. Texto e desenhos de Ricardo Cabral. ASA, 140 pp., 19,20 Euros.
Subway Life. Conceito e desenhos de António Jorge Gonçalves. Assírio & Alvim, 234 pp., 22 Euros.