Sin City: Valores Familiares condensa as qualidades e defeitos de Frank Miller numa narrativa intensa e bem construída, com as limitações que a série sempre teve. O (notável) estilismo expressionista do desenho reflete-se no tom sem cinzas de argumentos grandiloquentes, conservadores e moralistas, com ultra-violência, amazonas e fetichismo para disfarçar. Tem menos acordes do que o Rock, e foi por isso que a adaptação para cinema do subtil The Spirit de Will Eisner por Miller teve o previsível mau resultado; a diferença fundamental com cúmplices como Tarantino ou Rodriguez é que estes não sentem a necessidade permanente de se levar tão a sério. Sin City é simplista, brutal, honesto. Vive ali apenas quem quer, mas é sempre bom visitar. Caso se visite e não se sabe bem ao que se vem recomenda-se Sin City: Copos, Balas & Gajas, uma colectânea de histórias curtas. Miller funciona melhor como “shot”.
The Walking Dead tem outra densidade, e é surpreendente dizê-lo. A edição chegou com a mini-série para TV desenvolvida por Frank Darabont (The Shawshank Redemption) a partir da notável BD escrita por Robert Kirkman com desenhos de Tony Moore neste primeiro volume (seguiu-se Charlie Adlard com Cliff Rayburn). E “notável” é a palavra correcta. Pegar numa história com “zombies” (era isso ou vampiros?) e transformá-la em algo que transcende por completo a premissa e desenlace habituais é obra. Sucede porque The Walking Dead pouco tem a ver com “zombies”; é sobre encarar a dissolução do mundo, de como situações-limite mudam as pessoas (ou revelam a sua essência?). O principal mérito de Kirkman é construir, e, com a excepção do protagonista Rick, não ter problema em matar, personagens complexas e credíveis com as quais é fácil empatizar, a 180? das caricaturas de Miller. Podiam estar bloqueados numa mina ou no espaço sideral, estão isolados entre mortos-vivos, obrigados a repensar referências, prioridades e códigos morais.
É tentador comparar The Walking Dead a outra excelente série recente mais fácil abordar sem preconceitos: o já terminado Y, The Last Man, escrita por Brian K. Vaughn (desenhos de Pia Guerra). Nesse caso a dissolução do mundo é mais intelectualizada, com a morte de todos os homens à excepção do protagonista Yorick. Ambas as séries são pois sobre homens sós em busca de coordenadas num mundo tanto mais estranho, quanto reconhecível. E são ambas obras de argumento, o foco nunca poderia ser o virtuosismo gráfico, num equilíbrio oposto ao de Sin City. Já o nome dos protagonistas (Rick, Yorick) diz quase tudo quanto a diferenças. Y é uma série de conceitos (a começar no femininismo e estudos de género) e referências, vive de “riffs” temáticos momentâneos e inteligentes, mantendo o interesse de vários tipos de leitores. Essa é outra característica fundamental, em BD ou TV: transmitir uma sensação de cumplicidade, que leitores/espectadores estarão a perceber algo que escapará a outros. Y perdeu-se um pouco quando tentou explicar porquês; ou melhor, no momento em que Vaughn decidiu acabar com a série. Em The Walking Dead há menos condescendência com as citações e a preocupação é sobreviver, não perceber (em BD, não na série televisiva…). É possível que venha a cansar, mas com Kirkman a variar cenários e a introduzir constantemente novas personagens interessantes (e a deixar que as restantes evoluam de maneira lógica), isso ainda não sucedeu.
O novo fôlego da Devir é muito bem vindo, resta saber se a globalização, ou seja o facto de muitos bedéfilos já ter versões em inglês, não a ultrapassou. Para isso a solução é sempre a mesma: fugir do “mundo da BD” e ir à procura de outros leitores, desta feita com o cinema e TV a fazer pontes.
Sin City: Valores Familiares. Argumento e desenhos de Frank Miller. Devir, 128 pp., 12 Euros.
Sin City: Copos, Balas & Gajas. Argumento e desenhos de Frank Miller. Devir, 160 pp., 13 Euros.
The Waking Dead 1: Dias passados. Argumento de Robert Kirkman, desenhos de Tony Moore. Devir, 120 pp., 10 Euros.