“A caligrafia. A forma de andar. O padrão de porcelana que escolhemos. Tudo isto põe-nos a nu. Tudo o que fazemos revela as nossas intenções. Tudo é um autorretrato”, afirma no seu livro Diary, Chuck Palahniuk, também autor do famoso Fight Club.
Palahniuk não conhece o artista alemão Stefan Vogel, que vive e trabalha em Leipzig e, só em 2024, expôs o seu trabalho no Kunstmuseum Stuttgart, Kunstverein Gera e na Galerie Michael Haas, em Berlim.
Porém, caso entrasse em CENAS, exposição que este apresenta até 18 de janeiro no polo português da Jahn und Jahn, galeria fundada em Munique em 1978, por Fred Jahn, muito provavelmente comprovaria a teoria que apresenta em Diary.
É que, explorando o tema da liminalidade, a mostra oferece ao espetador um autorretrato quase involuntário de alguém que está à procura…
Do quê? Talvez de cristalizar o momento irrepetível entre o nascimento de uma ideia e a concretização da mesma. Algo que Vogel faz com mestria, através da construção de verdadeiros cenários carregados de sugestões sobre os espaços onde tal momento costuma acontecer: a alma e o atelier do artista.
Podendo ser entendida como um anagrama da palavra italiana scena – a cena – CENAS é um cenário e simultaneamente tudo o que o habita. Isto é, os materiais e obras usados por Stefan Vogel para construir uma paisagem que oscila entre o pós-apocalíptico e o onírico são muito mais do que isso.
Tudo é ambíguo. A imagem que concebemos do homem que se faz representar pelo cenário por ele criado depende, e muito, da nossa própria perspetiva sobre o Mundo
São pistas para o desenho de um autorretrato, o do artista, que cada um idealizará de forma diversa, consoante dê mais importância a uma fotografia, a duas palavras escritas à mão, a objetos do dia-a-dia “congelados” em resina ou a uma aparente predileção pela cor laranja.
Tudo é ambíguo. A imagem que concebemos do homem que se faz representar pelo cenário por ele criado depende, e muito, da nossa própria perspetiva sobre o Mundo.
Tiramos conclusões que só a nós pertencem, porque olhamos, e vemos, a realidade de uma forma que só a nós pertence. Ao desenhar o retrato do outro, descobrimos o nosso. E é nesta conversa íntima que Vogel nos lança ao longo das cinco salas expositivas de CENAS.
Por exemplo, em aus-wachsen (2024), apresentada logo à entrada, podemos adivinhar alguém contemplativo, paciente, capaz de apreciar a beleza da mudança. A obra, constituída por farrapos de t-shirts de bandas punk cosidos numa tela retangular, colocada dentro de uma caixa de vidro, no fundo da qual se encontra tinta azul, pinta-se a si mesma ao longo da duração da exposição, à medida que a tinta vai subindo e ensopando o tecido.
As salas que se seguem foram reencenadas completamente. A luz natural foi deixada no exterior, mergulhando o espaço na penumbra, cortada apenas por focos e feixes de luz estrategicamente posicionados. Do chão de parquet, agora coberto de cimento branco, “nascem” árvores, também elas cobertas do mesmo material, que apontam os ramos em direção ao teto.
Tais construções espaciais são acompanhas por obras realizadas através de técnicas que vão da pintura e do desenho à escultura, escrita, fotografa, tecelagem e um vasto leque de media como matéria orgânica, objetos quotidianos, mobiliário e tecidos.
Ainda que o cenário apresentado possa assemelhar uma terra devastada e inóspita, está carregado de poesia, contida nos rituais e nas “manias” do artista, motores dos gestos invisíveis que se pressentem por detrás de cada obra.
É o caso das centenas de passos que Stefan Vogel terá dado, ao longo de uma semana, para criar Morgen und Bushaltestelle als Körper im Zug e Langeweile, Tusche und das Fenster zum Keller, duas “pinturas” translúcidas, feitas de metros de fio enrolado em torno de molduras de madeira de dois metros por dois metros e quarenta, que se encontram entre a primeira e segunda salas.
Ou da fragilidade do traço escuro que parece firmemente desenhado sobre a tela branca de GR2024/1, mas que acaba por revelar-se apenas a sombra projetada de uma racha feita no vidro que cobre a obra.
Ao avançarmos ao longo da exposição, temos cada vez mais a sensação de explorar o interior do cérebro do artista, como se flutuássemos através dos seus sonhos, contemplando um autorretrato desenhado pelo seu subconsciente.
Fragmentos de imagens, palavras, frases, objetos e feixes de luz intersetam-se, fornecendo ao espetador aquilo que Vogel define como “ajudas ao crescimento” (Gewuchshilfen, em alemão), estruturas para uma linguagem que cada um acaba por interpretar de forma íntima e pessoal.
Em composições que recordam a estética Dadaísta, pela paleta cromática, materiais e técnicas, Vogel une frases enigmáticas, pedaços de papel, cartão, fio, peças de plástico, lascas de madeira, areia, pó e pedras, desenhando infinitas teias de pensamento.
“A expectativa teme sob a língua azul” lê-se numa das obras. “Eu venho aqui, mas nunca vou lá”, “aqui é melhor não”, diz outra. Ou ainda “tudo cai e estranhamente tudo se cola”, “comboios soluçantes lado a lado, as palavras como areia diluídas no ritmo salgado do pulso” e “impercetivelmente alto em si e na paisagem, sob o rumor do impacto”. Cabe-nos escolher que caminho seguir e que ideias associar entre si.
Tal como um poema, que termina de ser escrito apenas quando esbarra com a alma do leitor e ganha nela novos significados, as obras canalizam sugestões.
Escolhemos o que contemplar e o que ignorar, escrevendo uma história única, vivendo, dentro do cenário de Vogel, uma exposição que existe num lugar irrepetível do nosso ser: Aquele que habitávamos no dia em que decidimos entrar pela porta da galeria.