São 10h da manhã do dia 1 de junho. Ainda sobram 20 dias de Primavera, mas em São Luís, concelho de Odemira, o odor que se ergue da terra já é de Verão.
Os quase 26 graus matinais pedem água fresca, sombra e um café gelado, e são prenúncio do render da guarda que, em breve, o castanho do pó e da erva seca fará ao amarelo do tojo e da salva brava.
A poucos quilómetros de onde nos encontramos corre o Rio Mira, “o único, além do Sado, que segue de Sul para Norte”, explica o geólogo brasileiro Sergio Maraschin, “alentejano por opção” que reside em São Luís há 14 anos. Está à conversa com algumas das cerca de 30 pessoas que vão chegando à porta da Taberna da Carrasqueira.
Uns são da terra, outros acabaram de chegar de Lisboa. As apresentações intercalam-se com comentários sobre o tempo, o calor, o trabalho de cada um ou a seca preocupante, que se prevê ainda mais agreste nos meses vindouros.
Entre os presentes há artistas, curadores, cientistas, fotógrafos, estudantes, poetas, reformados. Por quão diferentes possam ser tais geografias espaciais, culturais e sociais, nas horas seguintes um único propósito uni-las-á: caminhar lado a lado.
Pela terceira vez, desde abril, a proposta, aparentemente simples, é lançada a quem se quiser juntar. Por detrás do convite está o projeto colaborativo para a regeneração da bacia do Rio Mira, Guardiões do Mira.
Com apoio da DGArtes e do programa Odemira Criativa, o projeto lançou, em abril de 2024, um Programa de Residências Artísticas, nascido “da vontade de incluir a arte na mediação entre a comunidade e aquilo que é o território local, o Rio Mira e as suas temáticas”, explica Leonor Carrilho, co-curadora do programa, juntamente com Filipa Oliveira.
De abril a junho e de setembro a novembro de 2024, dois grupos de quatro artistas, convidados por Filipa e Leonor, são acolhidos pelas associações locais Project Earth (Santa Clara-a-Velha), CACO – Associação de Artesãos de Odemira (Odemira), Cultivamos Cultura (São Luís) e Oficina na Escola (Vila Nova de Mil Fontes), onde terão tempo e espaço para refletir sobre esse grande mistério que são as relações: com a Terra, com o tempo, com o espaço e, inclusive, com o Futuro.
Além das residências, Filipa Oliveira e Leonor Carrilho planearam caminhadas quinzenais, como a que está prestes a começar, ao longo do rio, gratuitas, abertas ao público e guiadas por um dos quatro artistas, por um curador convidado e por um especialista local.
De garrafa de água na mão, pronta para começar a andar, Leonor assegura que a única orientação que deu a Sérgio Carronha, Hugo Brazão, Maja Escher e Adriana João, artistas em residência de 20 de abril a 23 de junho, “foi a de trabalharem sobre o Rio, de uma forma positiva, tentando aproximar as pessoas do mesmo”.
Para isso, e apesar de reconhecer a importância de problemáticas como a poluição da água e a diminuição do leito do Mira, a curadora defende que talvez seja mais importante refletir sobre a crescente distância física e afetiva entre o rio e as comunidades locais.
“As pessoas deixaram de olhar para o Mira como um sítio próximo das suas vidas, já ninguém lava a roupa no rio ou ensina os filhos a nadar naquelas águas”.
A seu lado, Diogo Dias Coutinho, um dos fundadores do projeto Guardiões do Mira, acrescenta que “são precisamente essas relações de afetividade entre água, biodiversidade, solo e comunidade que interessa fomentar”.
O poder da arte no meio de tudo isto? É que “só se cuida aquilo que se conhece”, diz Diogo, e há poucas coisas capazes de “falar sobre as histórias, as lendas, as afetividades, as memórias, as imagens e os sons como a arte”.
Além disso, continua, o pensamento artístico é talvez o único capaz de “olhar o mesmo objeto, neste caso o Rio, através de perspetivas muito diferentes”.
Afinar a observação e a escuta
A perspetiva que nos é oferecida nesta manhã de fim de Primavera é a de Maja Escher. À artista em residência na Cultivamos Cultura, juntam-se o geólogo Sérgio Marachin e o artista, performer e investigador Ritó Natálio.
“Gostava de propor que, a partir deste momento, não fôssemos só indivíduos, mas um tecido único, unido pela caminhada, que mergulhássemos numa observação e escuta intensas do que se encontra à nossa volta”, começa Maja.
Entregando cabaças vazias, à laia de alforges, a alguns dos caminhantes, a artista desafia-os a recolher pedras, paus, flores e outros elementos que espoletem reflexões ao longo do caminho. O objetivo da “investigação” coletiva, feita individualmente, é a de “afinar a observação e a escuta”.
O caminho arenoso do percurso conta, por si só, uma história tão imensa que nela caberiam milhões de vezes as 30 vidas que hoje o percorrem.
De tempos a tempos, em breves paragens, Sérgio Marachin conta-nos como o solo que esta manhã arde sob o calor de junho já esteve submerso pelo mar, foi deserto gelado e, em lugar de sapatos, já foi pisado pelos pés descalços dos primeiros hominídeos.
Ao longo de pouco mais de 5 km, os caminhantes são transportados não só através da paisagem alentejana, a precipitar para as margens do Mira, mas também através do mundo do “artista-guia”.
O movimento no espaço surge como pretexto para uma viagem coletiva ao interior de um processo criativo em construção, pautado por momentos de contemplação, reflexão e debate de ideias, de idas e vindas, de becos sem saída, de descobertas.
A proximidade ao Rio sente-se no pó das margens, que se agarra às solas dos sapatos, da mesma forma que se sente quando inscrevemos uma palavra numa pedra, algo que Sérgio Carronha propôs na caminhada que conduziu em abril, ou nos vestimos de amarelo para nos mimetizarmos entre os campos floridos, desafio de Hugo Brazão, em maio.
Sente-se ainda quando nos entregamos ao outro, de olhos vendados, explorando as possibilidades que o ato de confiar na bondade de estranhos pode oferecer, atividade que Maja está prestes a pedir ao grupo de caminhantes atrás de si.
As caminhadas, que “começaram como uma coisa mais processual”, conta Adriana João, acabaram por transformar-se num verdadeiro “objeto artístico”. Segundo a artista, a diversidade de experiências vivida em cada uma delas tem contribuído para que “todos se sintam muito estimulados”.
“Percebeu-se que é neste encontro de pessoas que vêm de vários pontos do país, artistas, convidados e conhecedores locais que se cria, de facto, alguma coisa de absolutamente novo”, acrescenta a curadora Leonor Carrilho.
À medida que avançamo pelos trilhos, o Rio ainda não está lá, mas, de certa forma, já está.
Sabê-lo por perto alimenta a imaginação, apura o olfato e o ouvido, instiga-nos a procurar o perfume de água fresca e o zumbir dos mosquitos que costumam povoar as suas margens. Essas margens que, antes de serem de lama e lodo, são de tudo o que cabe nos versos declamados por Ritó Natálio no cimo de uma colina, dando vida a ideias que ardem com mais força do que qualquer escaldão.
Percebeu-se que é neste encontro de pessoas que vêm de vários pontos do país, artistas, convidados e conhecedores locais que se cria, de facto, alguma coisa de absolutamente novo
leonor carrilho – curadora
Tal como o mar fez há 800 mil anos, as palavras de Ritó arrastam as margens colina abaixo, desenhando trilhos que serão percorridos pelos caminhantes do Futuro. Já Maja desafia aqueles do presente a vendarem os olhos, à vez, deixarem-se guiar uns pelos outros e, por fim, registarem o que “viram” em tiras de tecido, usando elementos da Natureza e lápis de cera criados pela artista com argilas da região.
“Desenvolvi estas peças de tecido como forma de oferecer às pessoas ferramentas de relação, mostrando-lhes, em micro-escala, o que eu acho que é necessário fazer quando se chega a um território específico: perceber o que lá está, entrar em relação com isso e com os nossos pares”.
A Arte enquanto território de relação
Entrar num território e trabalhá-lo artisticamente é, nas palavras de Leonor Carrilho, “muito complexo e pode soar, de certa forma, intrusivo ou superficial. É preciso ter muito cuidado”.
Nascida e crescida na região, no entanto, Maja já procura há vários anos, através do seu trabalho, uma “reconciliação” com a Terra.
Consciente de que a zona de Odemira é “um território bastante dividido em bolhas e comunidades que não comunicam entre si”, a artista chegou à conclusão que “é preciso curar as relações no território para podermos pensar num futuro ecológico da região”.
Apesar de serem naturais de Cascais e da Madeira e de viverem em Montemor o Novo e Lisboa, Sérgio Carronha e Hugo Brazão, “guias” das caminhadas anteriores, também encontraram formas de entrar no território com respeito e dignidade.
Se Maja conduziu os caminhantes através da contemplação da Natureza, Sérgio fê-los refletir sobre as leituras que se encontrava a fazer acerca das vagas migratórias da região e Hugo partilhou ideias relacionadas com a questão da cor, fundamental no seu trabalho.
À semelhança de Maja, ambos os artistas contaram com um curador convidado e um “detentor” do conhecimento local.
Sérgio fez-se acompanhar do diretor artístico da Bienal Walk and Talk, Jesse James, e de Maria Odete Oliveira, nas palavras de Leonor Carrilho “uma senhora do monte, que conhece todas as tradições, que lavava a roupa no rio que fundou o Grupo Etnográfico Gente do Alto Mira”.
Hugo Brazão conduziu a caminhada ao lado de Madalena Vitorino, coreógrafa responsável pela criação do programa Lavrar o Mar, que leva teatro, música e performances ao Interior algarvio, e Helena Loermans, holandesa que vive e tece em Odemira, há mais de 20 anos.
É preciso curar as relações no território para podermos pensar num futuro ecológico da região
maja escher – artista
Adriana João está ainda a preparar a sua, que decorrerá a 15 de junho, na companhia de Mariana Pestana, curadora-chefe do Centro de Arquitetura do Museu de Arte Contemporânea do Centro Cultural de Belém (MAC/CCB) e de Fátima Teixeira, fundadora do movimento de cidadãos de Odemira e Aljezur, Juntos Pelo Sudoeste, contra o avanço da agricultura intensiva no Litoral Alentejano.
À medida que a manhã se aproxima do fim, o grupo chega mais perto do Mira, junto do qual parará para almoçar. Lisboa está a 200 km de distância, porém, o ancoradouro sobre o qual se estendem mantas coloridas cobertas de saladas, húmus, tomate da região, pão alentejano, queijo, figos, cerejas, melancia e limonada fresca parece encontrar-se a milhares de quilómetros de distância da capital.
Neste lugar, entre a Terra, o Mar e o Rio, longe da azáfama citadina, perto da azáfama das almas inquietas, pensa-se melhor.
A brisa fresca convida à conversa e à troca de ideias, sobretudo entre Maja, Sérgio, Hugo e Adriana que, apesar de estarem em residências no mesmo concelho, vêm-se apenas quinzenalmente, durante as caminhadas.
A arte, nestes pequenos sítios, desencadeia ações e interações muito positivas. Se conseguirmos encontrar uma maneira de ligar as pessoas, a arte pode ser o processo de cura, operando, inclusive no sistema ecológico, social e até político
sérgio carronha – artista
Adriana João conta como o isolamento da aldeia lhe tem permitido dedicar-se mais à leitura, enquanto Hugo Brazão sublinha como o contacto com uma geografia diferente, e com artesãos locais e estrangeiros, das áreas da cerâmica e do têxtil, permitiram-lhe encontrar “alguma coisa que nunca encontraria no atelier”.
Sérgio comenta como, apesar de nas ruas das aldeias vizinhas a Santa Clara a Velha, onde está a trabalhar, ter encontrado comunidades separadas, sentiu que “os artistas despoletam sentimentos diferentes, são relativamente aceites”.
O artista não tem dúvidas de que “a arte nestes pequenos sítios desencadeia ações e interações muito positivas” e acredita que “se conseguirmos encontrar uma maneira de ligar as pessoas, a arte pode ser o processo de cura, operando, inclusive no sistema ecológico, social e até político”.
Chegar às margens
De facto, apesar de um dos objetivos de Diogo Dias Coutinho, ser a criação de pontes, através do Programa de Residências Artísticas, o fundador dos Guardiões do Mira confessa que “ainda há um público grande que é preciso alcançar. As pessoas acham que não pertencem, que não sabem o suficiente ou que o seu conhecimento não é relevante”.
E eis que, de repente, voltamos às margens. Até porque ser artista é viver à margem, ou talvez mesmo ser margem, moldando a forma de um rio que corre, tantas vezes, mais rápido do que gostaríamos.
Importa não esquecer, porém, o que se ouviu há pouco mais de uma hora, da boca de Sergio Maraschin, enquanto explicava de que forma o mar já esteve onde hoje há terra.
Ainda há um público grande que é preciso alcançar. As pessoas acham que não pertencem, que não sabem o suficiente ou que o seu conhecimento não é relevante
diogo dias coutinho – fundador dos guardiões do mira
As margens são móveis, como os povos, as ideias, a paisagem. Para que o Rio continue a correr para o Mar é preciso adaptar estruturas e formas de pensamento às realidades cada vez mais complexas, não só de Portugal, como de outras regiões do Mundo.
Não há receitas únicas, assegura Leonor Carrilho, para quem é importante “encontrar propostas artísticas que façam sentido em lugares e contextos rurais”, aproximando-os da arte de forma natural. “Há coisas que funcionam em Lisboa, mas não funcionam aqui, porque as pessoas vivem com horários diferentes, hábitos diferentes. Isto obriga-nos a perceber como é que as coisas funcionam e como é que a vida acontece”.
É importante encontrar propostas artísticas que façam sentido em lugares e contextos rurais. Há coisas que funcionam em Lisboa, mas não funcionam aqui, porque as pessoas vivem com horários diferentes, hábitos diferentes. Isto obriga-nos a perceber como é que as coisas funcionam e como é que a vida acontece
leonor carrilho – curadora
E sob o Sol de junho, a vida acontece lentamente. Após o almoço, a preguiça e o calor apoderam-se de todos os participantes. Há quem dê um mergulho e quem durma uma sesta à sombra de toldos coloridos. Quem sabe por quanto tempo as ideias trocadas durante a manhã ressoarõ na alma de cada um e que frutos darão.
Tudo parece possível. Há rios que mudam de direção por forças menores do que as da poesia.