Foi quando, em 2019, se encontrou com Hector Castillo, em Nova Iorque, nas gravações de Wine Album, o primeiro disco do projeto Rua das Pretas, que se fez luz. O produtor americano, de origem venezuelana, que já trabalhou com David Bowie, Björk, Lou Reed, Suzanne Vega, entre outros, descobriu na música de Fred Martins um tesouro natural. E concebeu para o seu novo álbum de originais, que acabou por produzir, um formato simples, despido de outros arranjos, reduzido à essência: a voz de Fred Martins e o seu violão, juntos, como se fundissem numa só matéria. Assim nasceu Ultramarino, que agora chega às lojas na Europa e Brasil, com os prestigiados selos da Biscoito Fino e Alfa Music (Itália).
O álbum vai tão ao encontro da alma de Fred que ele fala dele quase como se fosse o primeiro. Trata-se do renascimento de um grande músico, talvez um dos mais bem guardados segredos da música popular brasileira. Aliás, em conversa com o JL, chega mesmo a dizer: “Não gosto dos meus primeiros discos, se fosse possível retirava-os do mercado”. Refere-se, sobretudo, aos primeiros dois, gravados pela Niterói Records, em que aligeirou o estilo, aproximando-se de um rock mais abrangente. Isto é válido mesmo sabendo que temas por si criados foram gravados nas vozes Ney Matogrosso, Zélia Duncan e Maria Rita, entre outros.
Voz e violão, assim como se apresenta em Ultramarino, é também a essência da bossa nova, tal como João Gilberto a inventou. Menos é mais. Fred bebe de Gilberto o canto discreto mas cheio de subtilezas e o rendilhar da guitarra. E é da bossa que Fred mais gosta de falar. Explica: “Bossa nova na verdade é música brasileira moderna, não é um movimento limitado no tempo. A bossa nova é uma revolução muito amorosa dentro da tradição, situa-se entre o popular e o erudito.” E lembra: “Este jogo entre popular e erudito sempre esteve presente na música brasileira, de Ernesto Nazareth a Pixinguinha”. É nessa sofisticação popular que Fred encontra o seu espaço. E as grandes referências são mesmo essas: Pixinguinha, João Gilberto, Tom Jobim, João Bosco, Vinícius de Moraes… As músicas que ouvia desde criança em casa, parte coleção de discos do pai, com influência dos avós que eram músicos, mas que Fred não chegou a conhecer.
Fred Martins nasceu, em 1970, em Niterói, a cidade plantada em frente ao Rio de Janeiro, o equivalente a Almada, como ele gosta de dizer. Contudo, com apenas um ano de idade, a família mudou-se para Brasília, aproveitando os incentivos estatais, que convidavam famílias a se instalarem na capital. “Em Brasília, a minha mãe chorava todos os dias, porque não havia nada. Todos os que ali estavam sentiam saudades de alguma coisa”, conta. Uns sentiam falta da comida, outros dos familiares, das paisagens. A família de Fred sentia acima de tudo falta do mar. “Talvez tenha sido essa ausência que tenha tornado o mar tão maravilhoso e importante no meu trabalho”, diz.
Nos anos 70, ainda não brotavam ali os movimentos do rock brasileiro, dos Legião Urbana aos Capital Inicial. Havia um imenso vazio salvo pelos prédios de Niemeyer. De Brasília ficou-lhe a imagem do céu. Recorda: “Um céu infinito, que se vê de onde quer que se esteja e a terra vermelha”. Para preencher o vazio, o jovem Fred passava os dias a desenhar, com precisão e minúcia. “Julgo que a lógica minuciosa do trabalho dos meus desenhos passou para a música”, afirma.
A música, propriamente dita, chegou mais tarde, depois dos pais terem regressado à Baía de Guanabara. Os seus irmãos, dez e 11 anos mais velhos, foram uma boa influência. Através deles ouvia bons discos de rock internacional, dos Beatles e Led Zeppelin. Mas nada o marcou mais do que a música brasileira que apanhava na rádio. Tinha um “tijolo” que permitia gravar a rádio em cassetes, e ia guardando a bossa nova que ia passando. Houve um tema que o marcou particularmente: “Eu vim da Bahia”, na voz de João Gilberto. “Tudo aquilo se tornou muito misterioso para mim e eu tinha que desvendar aquele mistério”, explica.
Uma madrinha oferecera há anos uma guitarra ao seu irmão, a que ele, mais interessado em biologia marinha, pouco ligava. Movido pela curiosidade, o jovem Fred, aos 10 anos, pegou na guitarra velha e estragada, reconstruiu com umas cordas feitas de fios de pesca e pôs-se a tocar. Aprendeu sozinho, empiricamente, com uma “guitarra de trapos”, assim como os miúdos da rua jogam futebol com uma “bola de meia”.
A partir daí, as coisas foram acontecendo de forma natural. Uma vizinha deu-lhe as dicas certas de como pôr o violão a tocar como deve ser. E a irmã, adepta de música popular brasileira, levou-o a um concerto de Djavan. Ele ficou deslumbrado com o que ouviu e decidiu investir mais ainda. Foi seguindo os passos de Marcelo Martins, um amigo que acabou por se tornar um nome reconhecido da música brasileira, cujos irmãos mais velhos estudavam música.
Ao tempo, só havia escolas dedicada à música erudita, que não era o que lhe interessava. Mas Fred descobriu um músico, o professor Sérgio Bertelli, que acrescentava os estudos harmónicos da música popular americana à MPB. Esse trabalho prosseguiu mais tarde, também no Rio de Janeiro, com o húngaro Ian Guest.
Aos 17 anos, Fred Martins já não punha outra hipótese senão trabalhar em música. E surgiu-lhe uma oportunidade muito especial. O músico e produtor Almir Chediak teve a ideia de criar songbooks de MPB. E, durante uma dúzia de anos, Fred dedicou-se ao trabalho de transcrever obras de grandes compositores para o papel. Um trabalho esforçado, de grande atenção e rigor, mas que fez com que estudasse e conhecesse profundamente os repertórios completos de compositores como Noel Rosa, Tom Jobim, Chico Buarque, Gilberto Gill, Cartola…
Durante esses ano anos teve este trabalho intenso, vivendo da música de uma outra maneira. E, ao mesmo tempo, ia compondo as suas próprias canções.”Sem grande pretensão, afirma, era apenas um estudo ou uma continuação da música dos outros”.
Até que um dia, sem saber bem saber como, uma das suas canções, “Novamente,” foi parar aos ouvidos de Ney Matogrosso, que a resolveu gravar no disco Olhos de Farol. Estava dado o primeiro passo. A música de Fred Martins atingia assim um público mais alargado e crescia a curiosidade em torno do compositor.
Na verdade, Fred compõe desde muito cedo e o tema Guanabara, escrito aos 17 anos, em parceria com o amigo e escritor Marcelo Diniz, numa homenagem à beleza natural do Rio de Janeiro, ainda hoje interpreta ao vivo. Aliás, da arte de fazer canções, Fred diz que o grande desafio é criar algo que resista ao tempo. E talvez por isso, na música que agora faz, nunca caia em opções fáceis. O seu som é simultaneamente popular e sofisticado, ao exemplo da melhor bossa nova.
Depois de um miniálbum, editado ainda no início dos anos 90, o primeiro disco, Janela, surgiu já em 2001. Contudo, o caminho seguido na altura não lhe agrada atualmente. Ele explica: “A ideia era fazer música usando elementos simples, um pouco na lógica da música que ouvia com o meu irmão, mas aquilo era só uma fase”. Aliás, pouco depois da gravação apercebeu-se do erro. Havia mais um disco contratado com a editora. Tentou mudar a mão e derivar para uma bossa mais sofisticada que agora toca. Só que a editora recusou aquele novo repertório, insistindo na ideia de algo mais ligeiro, fácil para o povo ouvir.
Entretanto, Fred Martins concorreu ao importante Prémio Visa, passou as quatro fases e acabou mesmo por ganhar, Aquele foi o pretexto certo para dar um grito de Ipiranga criativo. Rompeu o contrato coma editora e dedicou-se, corpo e alma, a fazer a música que mais gostava.
Foi também a sua atuação televisiva, em São Paulo, integrada no prémio Visa, que chamou a atenção de um grupo de músicos galegos, que estava de passagem no Brasil. Convidaram-no para atuar no festival na Galiza. Fred partiu então para a Europa… e acabou por lá ficar. “Quando aterrei no Porto e fiz o caminho para a Galiza, fiquei muito impressionado com as cores e a natureza, apercebi-me que a selva urbana de São Paulo poderia ser muito agressiva”. Instalou-se na Galiza, foi tocando aqui e ali. E descobriu que ao longe vê-se melhor. E tudo se torna especial. No inverno frio de Santiago de Compostela escreveu canções a falar do calor do Rio de Janeiro.
Certo dia Maria Pagés, coreógrafa de flamenco contemporânea, montou um espetáculo dedicado a Oscar Niemeyer e convidou-o a escrever a banda sonora e entrar em digressão por Espanha. Assim aconteceu.
De Espanha, e da Galiza, Fred Martins passou para o Porto; e do Porto para Lisboa, mantendo sempre visita regulares e pequenas digressões pelo Brasil. Hoje engrossa a lista de notáveis músicos brasileiros que residem em Portugal, ao lado de Malu Magalhães, Marcelo Camelo, Pierre Aderne, Luca Argel, Walter Areia, entre tantos outros.
Em Lisboa, encontrou casa na Rua das Pretas, o projeto liderado por Pierre Aderne, que funciona como uma espécie de tertúlia musical. Costumava decorrer todos os fins-de-semana no Príncipe Real, mas com a pandemia teve de se reinventar, tornando-se inclusive um programa de televisão.
Na Rua das Pretas há um constante diálogo transatlântico, entre fado e bossa nova, com convidados variados no mundo lusófono. Foi ali que Fred se encontrou com Joana Amendoeira. A fadista sentiu logo uma grande afinidade e fascínio musical e desafiou Fred a compor canções para o seu novo disco. Na Volta da Maré é totalmente composto por Fred Martins, com letras de Tiago Torres da Silva. Não é um disco de fado, embora tenha fado lá dentro.
Por coincidência, o disco de Joana Amendoeira, gravado ainda antes da pandemia, sai quase em simultâneo com o novo trabalho a solo de Fred Martins. É quase um díptico que nos permite conhecer duas facetas do músico. Ele explica: “O Ultramarino é um percurso meu. Há temas que são Rio de Janeiro puro, coloquei aqui a minha base e predispus-me a viajar… O disco com a Joana já é própria viagem”.
Mas há mais por conhecer. Antes de Hector Castillo ter chegado a este conceito simplista, Fred Martins preparava-se para gravar um álbum mais político, para expressar o seu profundo descontentamento com a situação atual do Brasil. Esse álbum ainda está a ser construído. Mas entretanto, os ventos da portugalidade já lhe trouxeram novas ideias: quer adaptar canções portuguesas, adaptando-as à sua peculiar linguagem musical. E é assim que Fred Martins se reconstrói, numa espécie de esparragata musical, com um pé de cada lado do oceano.