Quem é Beethoven? Desde aqueles que simplesmente o ignoram aos especialistas que o estudam a fundo, passando pela experiência infinitamente matizada de quantos escutam a sua música, os perfis de uma possível relação (ou não-relação) com o compositor são inabarcáveis na sua imensa variedade. Nisso, Beethoven não é diferente de qualquer escritor ou artista, cujo nome e cuja obra circulem no espaço e no tempo, expostos à apropriação, à indiferença, ao desconhecimento ou até à hostilidade de potenciais recetores…
Se um compositor e a sua obra são inseparáveis das práticas socioculturais no seio das quais se afirmaram, também o não são menos dos outros contextos espácio-temporais, estratégias de comunicação, tipos de estratificação cultural e social, com que se vão cruzando e que necessariamente os transformam. Ao inscreverem-se, como é o caso de Beethoven, no cânone de uma cultura, no património de valores e crenças em que esta se reconhece, suscitam um processo ininterrupto de incessante redescoberta, revisão e reposicionamento. Nesse sentido, há tantos Beethovens quantos os agentes – e somos nós todos! – que coproduzem o sentido da sua música.
O dissenso e a controvérsia começam, desde logo, nos próprios especialistas, que, incansáveis na investigação de novas fontes, na reanálise crítica de outras já conhecidas ou no repensar de elementos dados como adquiridos, contribuem para essa pluralidade de visões do compositor, por sua vez reflexo, em maior ou menor medida, de diferentes mundividências.
Os meus encontros com Beethoven também não têm sido, naturalmente, imunes a mudanças de perspetiva. E talvez pudesse até reconstituí-las em parte, pelo menos desde o final da década de 60, quando comecei a assinar textos de crítica musical na imprensa. De qualquer modo, testemunhos verbais sobre a experiência da música não se confundem com a experiência propriamente dita da mesma. E essa tem o condão de me pôr perante um Beethoven que nunca se esgota no familiar ou no já conhecido, antes se me apresenta sempre como algo por descobrir, apelando repetidamente a uma escuta indagadora, jamais saciada.
Novas biografias e outros estudos surgiram nos últimos anos, alguns tendo em vista agora celebrado 250.º aniversário do compositor, batizado a 17 de dezembro de 1770, mas presumindo-se que tenha nascido na véspera. Assinalando também nestas páginas a efeméride, opto por chamar a atenção para uma obra de fundo sobre o compositor, projetada por Theodor W. Adorno, mas jamais terminada, que nos chegou sob a forma de fragmentos ou anotações, numa edição póstuma publicada em 1993 (Beethoven – Philosophie der Musik, ed. Rolf Tiedemann, Frankfurt a. M., Suhrkamp).
Nela, Adorno, cuja Teoria Estética (também publicada postumamente, em 1970) recusa liminarmente a indagação da “mensagem” ou das “intenções” da obra de arte para se focar na “objetividade da própria coisa” – isto é, na observação da sua coerência interna, ditada pelas leis imanentes da forma –, vê na obra de Beethoven uma verdadeira “filosofia”, mais precisamente, uma “interpretação filosófica do mundo”, homóloga à da filosofia hegeliana. É certo que a evidência de um pensamento dialético em Beethoven, já sustentadada por Harry Goldschmidt em alguns dos seus incontornáveis trabalhos sobre o compositor, publicados mormente nas décadas de 60, 70 e 80 do século passado, parece impor-se intuitivamente, nem que seja como analogia, e eu próprio me socorri dela ocasionalmente.
Adorno, porém, aproxima o movimento imanente do conceito (em Hegel) do trabalho motívico-temático (em Beethoven) em termos que não são os de uma mera analogia, antes se nos apresentam,
digamos assim, como o verso e o reverso da mesma medalha. A diferença entre a lógica conceptual de Hegel e a música de Beethoven reside apenas, segundo Adorno, no facto de uma lidar com enunciados verbais, suscetíveis de ser julgados como verdadeiros ou falsos, enquanto a outra, lidando embora também com formas lógicas enquanto tais, desconhece o juízo, opera uma síntese de outra espécie, constituída somente pela constelação dos seus elementos, síntese que está igualmente em relação com a verdade, mas com uma verdade que se manifesta na coerência objetiva da obra.
Na música de Beethoven, o sentido da forma como processo ou devir, em que os motivos aparentemente antitéticos ou contraditórios são, por fim, compreendidos na sua identidade, com a consumação da totalidade, corresponderia assim, literalmente, à dialética do geral e do particular, do todo e da parte, que informa a filosofia hegeliana.
No entanto, como que confirmando a recusa de Adorno em atender à “mensagem”, às “intenções” ou às “fontes biográficas” na abordagem da obra, nada há que sustente uma relação consciente de Beethoven (1770-1827) com Hegel (1770-1831), assim como também não há qualquer referência de Hegel a Beethoven. O que gera essa convergência inconsciente de ambos na “internalização do grande teatro do mundo” é, aparentemente, apenas, a inscrição deles num determinado momento histórico e a genial assimilação crítica das tendências mais avançadas que eles foram capazes de captar no seu respetivo campo de laboração.
Adorno argumenta mesmo que o “estilo tardio” de Beethoven, das últimas sonatas e dos últimos quartetos, que tende à dissociação e à fragmentação, vai além de Hegel, na medida em que reconhece a totalidade como mera aparência e suspende aquilo que ele considera ser o “escândalo” da filosofia hegeliana, a saber: que o “todo” seja a dialética sujeito-objeto, mas ao mesmo tempo se revele como a vida do “espírito
absoluto”. Numa humanidade não-reconciliada consigo própria e com a natureza, a “totalidade já alcançada” é ilusória. A fratura que nos separa dela, experienciada como défice, dor, “dissonância”, ou seja, “promessa de felicidade quebrada” – para usar uma expressão da Teoria Estética a respeito da arte em geral – torna-se abertamente exposta no “estilo tardio”, como se o compositor tivesse desistido de encenar a “síntese”…
Na gravura de 1823, que ilustra este texto, Beethoven é representado sentado à mesa de um café, com um jornal debaixo do braço. Na sua muda eloquência, mostra como nenhuma outra o perfil de alguém atento ao mundo.J