João Pedro Mamede protagoniza A Máquina Hamlet, de Heiner Müller, que os Artistas Unidos (AU) levam à cena até 22 de fevereiro, no Teatro da Politécnica. Encenado por Jorge Silva Melo, que também assina a tradução feita com Maria Adélia Silva Melo, o espetáculo conta ainda no elenco com Américo Silva, André Loubet, Hugo Tourita, Inês Pereira, João Estima e José Vargas. A música original é de João Madeira, contrabaixo, a cenografia e os figurinos são de Rita Lopes Alves. Uma “peça perturbante para arrancar 2020 ”, diz ao JL o encenador e diretor dos AU, que quer fazer ressoar em palco a “palavra agreste, amarga, dura” do dramaturgo alemão (1929-1995), lançando “provocações como pedras atiradas à plateia”. Um trabalho de representação que o ator, João Pedro Mamede, espera que faça “justiça” ao autor, como também nos diz.
Entretanto, Vidas Íntimas, de Noël Coward, que os AU estrearam no final do ano passado, em Vila Real, prossegue a sua digressão pelo país, com sessões previstas já a 18, em Santarém, no Teatro Sá da Bandeira, e a 24, no Theatro Circo, em Braga, e posteriormente em fevereiro, em Leiria, Coimbra, Viana do Castelo e Torres Novas. Também com encenação de Jorge Silva Melo e interpretação de Rúben Gomes, Rita Durão, Tiago Matias, Vânia Rodrigues e Isabel Muñoz Cardoso, encerrará a sua carreira em março, de 4 a 9, no Centro Cultural de Belém.
Jornal de Letras: Por que decidiram fazer agora A Máquina Hamlet?
Jorge Silva Melo: Porque tinha um ator para a fazer, João Pedro Mamede. É um ator jovem excelente e, mal o vi, pensei que era com ele que queria fazer a peça. Entretanto, meteram-se pelo meio muitos outros projetos dele e meus.
João Pedro Mamede: É uma peça muito interessante e difícil. O Jorge convidou-me já há algum tempo e finalmente foi possível. E só com ele o poderia fazer.
Acontece-lhe muitas vezes JSM, levar um texto à cena porque encontrou o ator ou os atores para o fazerem?
JSM: Sim. Funciono muito dessa maneira. Há textos de que gosto, mas vão ficando na gaveta até que encontro um ator que acho bom para os fazer. Aconteceu-me também com o Vidas Íntimas, quando reparei que o Rúben Gomes e a Rita Durão já tinham idade para fazer um casal de ex-divorciados…
Quando soube que queria fazer a Máquina Hamlet?
JSM: Na verdade, é um texto que procuro fazer há muitos anos. Acompanhei a sua estreia mundial, em 1978, em Paris.
Assistiu à estreia?
JSM: Não, mas acompanhei toda a produção, porque na altura estava a viver em casa do Jean Jourdheuil, que dirigiu o espetáculo. Foi um texto que então saiu às escondidas da RDA, o Jourdheuil quis encená-lo e acompanhei de perto as discussões com o Heiner, os ensaios. E fiz logo uma primeira tradução, já editada nos Livrinhos dos AU. Chegou agora a altura de a poder fazer e o estranho é que a peça ganhou novos contornos.
Em que sentido?
JSM: Quando se fala das ruínas da Europa ouve-se hoje de uma maneira muito diferente de quando ainda havia o Muro de Berlim. Aliás, agora estamos mesmo nas ruínas da Europa. E é um texto que mantem o seu enigma, que não esclarece os mistérios que levanta e que continuam imperscrutáveis. Heiner Müller dizia que fazia literatura para complicar o teatro. E é o que ele faz, complicar a vida dos encenadores.
Pela natureza do texto?
JSM: Porque não se trata de explicar aos espetadores que é um texto que lhes diz respeito, antes de lançar provocações como pedras atiradas à plateia. E Heiner Müller é terrível, tremendo de acutilância. É esse trabalho que estou a tentar fazer com os atores e com a música, com o João Madeira, um extraordinário contrabaixista.
A música tem um papel muito importante?
JSM: Sim, há muito tempo no espetáculo com o contrabaixo solo. E há um coro composto por sete atores. Esta peça já foi feita das mais variadas formas, por vezes até grotesca, outras ritual. A mim, apeteceu-me que fosse uma peça coral. Ou seja, como consegui fazer com um outro texto de Heiner, baseado em Brecht: um coro permanente, de onde, de vez em quando, sobressaem personagens. Como se fossem esboços, desenhos inacabados que contêm o magma do que é a humanidade. O que me interessa com este texto é descobrir as pontas do icebergue, sem descobrir o icebergue.
JPM: Essa busca de sentido que não é clara é uma das coisas que mais gosto na peça. E é bom fazer essa pesquisa.
JSM: Como se trabalhássemos nos limites da vigília, quando estamos a adormecer e só vemos sombras que não conseguimos definir. É nesse limbo que estamos a trabalhar. E estou angustiado.
Porquê?
JSM: Porque é um texto muito angustiante. Um libelo ofegante, sério, grave. Mas estou muito contente por abrir o ano com esta peça que não é clarificadora, mas perturbante.
Uma perturbação diferente da que implicaria quando foi escrita?
JSM: É sempre perturbante. No fim dos anos 70, havia a sensação que estávamos num mundo a abrir, completamente novo. Agora, abriu-se um mundo inexplicável.
Daí também a necessidade de voltar hoje a esse texto de reflexão sobre a Europa?
JSM: O que faço agora, que a peça, que Hamlet já terminou? O que faço perante as ruínas da Europa, agora que o sonho acabou, que as utopias foram por água abaixo? A ideia de desmoronamento do mundo é fundamental no Heiner. Mas é já de outra História que estamos a falar. É assim que começa a peça. E ele diz “Blá-blá-blá”. Ou seja, conversa de surdos. E é tremenda a violência, que vem da própria linguagem do Heiner Müller.
A violência do texto é particularmente exigente para o ator?
JPM: Já tenho trabalhado a violência no teatro, noutros textos. Neste caso, também lá está, por vezes quase hardcore. E também se pode descortinar como um ajuste de contas, uma vingança em relação às origens. Há uma devoração dos complexos de Hamlet, uma visão livremente apoiada em Shakespeare, muito corrosiva.
JSM: É um texto com uma liberdade e uma violência raras, com muitas possibilidades. Sou um admirador da obra do Heiner e é dos textos que acho mais intemporais. Não vamos fazer um espetáculo em que haja imagens violentas como alguns o fizeram já, a propósito deste texto. Vamos deixar que a palavra seja agreste, amarga, dura. E isso é um trabalho difícil para os atores. Mas o João Pedro está a fazê-lo particularmente bem.
Também, JPM, a vida do ator é complicada com A Máquina Hamlet?
JPM: Complicado é a palavra. O trabalho que faço é no sentido de compreender e chegar mais longe no sentido que as palavras podem ter. Não se trata bem de uma personagem, mas de um sujeito de enunciação, um espetro, um ator, um papel que é um caleidoscópio de pontos de vista. Daí a complexidade.
E o que foi especialmente complicado na encenação?
JSM: Ser feroz e não melancólico. Não sermos solenes perante essas palavras que implicam príncipes, reis, poder, a que normalmente associamos veludos e oiros. E deixar que cada palavra possa ecoar como pedras. Qualquer coisa muito próxima daquilo que foi, nas artes plásticas, a arte povera, em que vários artistas de Itália pegaram em materiais de rua e conseguiram fazer a partir deles obras de arte. O que é importante n’A Máquina Hamlet é a presença absoluta do ator. Que, aliás, diz que não é Hamlet, mas o ator.
Isso é um outro desafio?
JPM: Sim. Se também estou a fazer uma representação. Estou a pôr-me em cena e também há uma procura de mim próprio como ator. E é mesmo interessante explorar que sujeito é esse que diz que já não é Hamlet, os diferentes níveis de representação, as palavras de Heiner Müller, tentar fazer-lhes justiça.
Como tem corrido a digressão de Vidas Íntimas?
JSM: Bastante bem. Tenho visto os espetadores com uma escuta atenta e divertida, porque a peça é muito engraçada. Riem timidamente no primeiro ato, muito mais no segundo e acabam às gargalhadas, num crescendo de empatia e de reconhecimento.
Do quê?
JSM: Das lutas conjugais e do amor. Porque estranhamente é um casal que se encontra quando já estão divorciados. Não é o casamento que os une, mas o divórcio.
É uma forma de refletir sobre as relações conjugais hoje?
JSM: O teatro é sempre isso: pensar hoje, quer sejam relações amorosas ou políticas, mesmo que seja uma peça anacrónica, situada nos anos 30, como esta. Para o Noël Coward, o teatro era pura fantasia, não queria de todo sentir as agruras do quotidiano no palco. O que queria era champanhe… Mas com veneno. Vidas Íntimas é uma peça que andava a tentar montar há três anos. Encontrei parceiros de produção no Teatro Nacional de S. João e no CCB, onde vamos estar em março. É bom fazer agora também uma comédia. E ouvir o riso dos espetadores.J