Impossível não amar a obra épica e lírica de Camões em toda a extensão das suas variáveis de género, tempo e estéticas. É bem o meu caso. Mas não uso de reservas nem de preconceitos quanto à veneração da epopeia se ideologicamente lida como verdade histórica e exaltação impoluta do passado luso. Longe de mim opor ressalvas de cariz literário a Os Lusíadas, o opus magnum da nossa literatura. A minha geração foi patrioticamente educada na leitura e no estudo dessa obra em sintonia de concordância com a ideologia do salazarismo. Crescemos na tentativa de nos libertarmos dela, opondo-lhe a nossa afirmação e a independência da nossa leitura. Largos anos mais tarde, já na condição de docente, nunca condicionei os meus alunos a um ensino-aprendizagem do poema à luz de premissas ideológicas e outras reservas do género.
O mesmo não direi sobre a necessidade de ilustrar os alunos na exigência de uma análise simultaneamente inscrita no passado e no presente. Ler o ontem com olhos de hoje é já em si uma atitude crítica e pedagógica, com a qual julgo ter-me dado bem. Daí começar por incutir-lhes noções elementares sobre Renascimento, Classicismo e Humanismo, para justificar melhor a inscrição do cânone literário a que o autor de Os Lusíadas teve de atender. Era exigível ler a obra em duplo, no passado e no presente, quanto à disciplina e à confissão “patriótica” do maior génio da literatura portuguesa. Estudávamos os planos temáticos do poema: narrativa da viagem à Índia, evocação da História da Portugal ao rei de Melinde, recurso (lúdico ou canónico) à mitologia do Maravilhoso pagão versus cristão, estrutura, pensamento histórico e o mais a que Camões teve de cingir-se por norma e código da edificação épica.
Nos nossos dias, uma escrita similar à de Os Lusíadas não passaria de uma atroz laudatória patriótica, tanto na sua falsidade factual quanto na “imitação de uma verdade” a que chamamos ficção. Prefiro o Camões lírico a essa engenharia epopeica, sendo-me óbvio que estamos perante uma obra em parte cativa das suas vertentes estéticas — a tradicionalista na linha do “cancioneiro português”, a renascentista lírica da canção e do soneto (à maneira de Petrarca) e uma épica de matriz virgiliana, homérica e horaciana. Era-lhe disciplinarmente “obrigatório” monumentalizar os heróis do mar e elevar a tal condição uma gente aventureira, tida por invencível contra tudo e todos: castelhanos, mouros, piratas e quejandos. Sabe-se que o manuscrito de Os Lusíadas foi censurado antes da sua publicação. Mas nunca estaremos certos nem seguros de que a sua escrita não tenha passado também pela “auto-censura” do autor quanto aos trâmites e limites da ideologia da História de então.
A minha preferência pelo lirismo de Camões, mesmo o interiorizado na epopeia, apoia-se em episódios tão marcantes como os de Inês de Castro (ninguém a cantou tão maravilhosamente como ele), da formosíssima Maria e do Velho de Restelo, além das estrofes finais de alguns Cantos, nas quais o autor invetiva o destino, os infortúnios da vida e a surdez dos altos poderes para com os trabalhos da poesia.
Enquanto os portugueses se comprazem na exaltação patriótica de Os Lusíadas (1572), os nossos vizinhos e “inimigos” espanhóis espelham-se no pícaro do Don Quijote de la Mancha (1605) e riem com o anónimo do “Lazarilho de Tormes” (1554) — e nem por isso lhe caíram parentes na lama. Nós passamos ao largo da contra-epopeia de Fernão Mendes Pinto, na obra-prima de Peregrinação (1614); franzimos o cenho aos episódios da História Trágico-Marítima (1735/6), além de obras como A Arte de Furtar (1743), as sátiras de Gil Vicente e os escritos de António Vieira. Da mesma forma, nunca assumimos a atualidade da caricatura social que nos deixou de Eça de Queirós, etc.
A contra-epopeia não está na consciência do nosso passado, nem pensamento do tempo presente. Não fomos melhores nem piores do que mouros e castelhanos nas guerras ganhas e perdidas. Como eles, pirateámos mares, fozes e costas marítimas, bombardeámos cidades, erguemos as nossas fortalezas futuras. No Brasil, foi um tal dizimar os débeis “índios” para os substituir por negros capazes de todos os trabalhos e chicotes — o mesmo que os espanhóis praticaram na restante América Latina. Quanto a esclavagismo, povoamento à força de territórios então desertos, colonização e colonialismo secular, nisso creio estarmos mais do que confessados, e por experiência própria. Veio-nos uma literatura anti-colonial como iminência de um novo Alcácer-Quibir (não necessariamente sebastianista) de que nos falam a poesia e o romance Jornada de África, de Manuel Alegre (1989); vieram-nos livros e livros referidos às três frentes africanas da guerra colonial e também ao chamado “regresso das caravelas” (leia-se As Naus, 1988, de António Lobo Antunes, cujas personagens têm nomes históricos e que voltam vencidas e cabisbaixas, à primitiva pátria: Diogo Cão, Vasco da Gama, Francisco Xavier, Pedro Álvares Cabral, o próprio Luís de Camões, etc.).
Não obstante esta onda expansionista de séculos, continuamos a ser o país da pobreza anterior e posterior à desventura colonial, incapaz de assumir a culpa e a redenção da contra-epopeia. A tudo o que hoje sabemos de nós mesmos falta uma consciência acusada e um sentimento público de culpa. E um qualquer gesto de súplica pelo perdão dos mortos. De cada vez que ouço o hino nacional na voz das multidões, a exaltar os “heróis do mar” e os “nossos egrégios avós”, e a gritar-me às armas e a marchar contra os canhões, sofro um calafrio interior, não sei se por de falta de fé patriótica ou se por agnosticismo da memória.
Não vale imputarmos ao grande Luís de Camões qualquer responsabilidade pela ideologia da epopeia. O que aqui se critica somos nós, no nosso imobilismo, nesta espécie de sanha grandiloquente de um imperialismo português que, pelos vistos, nunca existiu. Leiamo-lo se possível em estado de inocência pura, quanto ao poder genial da sua lírica; mas façamo-lo também criticamente, ideologicamente, pelo direito que nos assiste de nos constrangermos por dentro ante o épico laudatório de Os Lusíadas. Camões criou uma obra ímpar e suscetível de várias leituras; mas teve, primeiro, de inventar uma língua para a escrever. Para nos legar.