Meia centena de histórias, muitas das quais desconhecidas, em Resistências – Insubmissão e Revolta no Império Português, de Mafalda Soares da Cunha, investigadora e professora da Universidade de Évora, que coordena o projeto europeu “Resistance. Rebellion and Resistance in the Iberian Empires”. A ideia é desocultar três séculos e meio de revoltas, insurreições, motins, desacatos, altercações, levantamentos, fugas que não fizeram História, mas podem abrir caminho para uma melhor compreensão do processo e do desenvolvimento histórico. É o que afirma a historiadora ao JL, numa entrevista a que juntamos um texto de Renata Araujo, prof.ª da Universidade do Algarve, sobre a obra agora publicada pela Leya
Do Minho ao Algarve, do Brasil a Timor, de Angola ao Japão, da Índia a Macau, 50 histórias de resistência em Portugal e nos territórios que estiveram sob o seu domínio colonial, entre 1500 e 1850, são agora contadas em livro: Resistências – Insubmissão e Revolta no Império Português, um volume organizado pela historiadora Mafalda Soares da Cunha, que conta com a participação de 35 investigadores de Portugal, Brasil, Cabo Verde e Estados Unidos.
Uma prova da resistência que, com diferentes protagonistas, pessoas e grupos discriminados, oprimidos, marginalizados, em diversos tempos e geografias, sempre existiu, ainda que tivesse sido “invisibilizada” pelo poder dominante, e ignorada pela História, que durante muito tempo registou sobretudo a “visão dos vencedores”. “Escreve-se agora outra narrativa. E é importante que se recupere o envolvimento desses grupos na História”, como adianta Mafalda Soares da Cunha ao JL.
Mafalda Soares da Cunha é profª de História Moderna na Universidade de Évora. Desde 2018 coordena o projeto europeu Resistance. Rebellion and Resistance in the Iberian Empires, 16th – 19th Centuries, que aposta no “intercâmbio” e “troca de conhecimentos”, e na circulação de investigadores por um conjunto de universidades europeias e não europeias. Um projeto em que se inscreve a obra agora publicada e que se soma a outros títulos da sua autoria, como A Casa de Bragança (1560 -1640), D. João IV, com Leonor Freire Costa, e Os Municípios no Portugal Moderno, com Teresa Fidalgo Fonseca.
A época moderna e a história social e institucional em Portugal e no seu império colonial estão no cerne do seu trabalho, sobre o qual publicou vários estudos. Além da investigação sobre a resistência, está agora a trabalhar sobre “as suspeições levantadas aos magistrados, acusados de falta de imparcialidade e de prejudicarem a boa execução da justiça”. Um assunto que pode parecer um pouco aborrecido, como faz notar, mas tem “esperança” que se possam encontrar “histórias muito interessantes”.
Jornal de Letras: Não há dúvidas de que “há sempre alguém que resiste”, como diz o poema de Manuel Alegre?
Mafalda Soares da Cunha: Diria que é mesmo uma evidência, em todas as circunstâncias e contextos.
No entanto, quem resiste nem sempre passa à História.
Mais recentemente, as abordagens têm sido alteradas e tem havido uma maior preocupação com o estudo desse tipo de tópicos e de temas, mas a verdade é que, até há pouco tempo, normalmente o que se escrevia eram as visões dos vencedores, não tanto dos vencidos.
Costuma dizer-se, de resto, que dos fracos não reza a História.
E essa é uma cultura transversal que também contaminou a forma como se fazia a História e se escolhiam os temas relevantes. Não se estudavam aqueles cujo papel era considerado menor, os que não pertenciam às elites, ao poder, havia a ideia que não tinham importância na modelação da História, que eram marginais e secundários na compreensão do processo histórico. Tudo isso resulta de pré-conceitos e não de conceitos. Por outro lado, a História faz-se com documentação, geralmente produzida e preservada por instituições, o que significa que delas constam os registos daqueles que a elas pertenciam. E que eram os grupos dominantes.
Daí que passe sobretudo a narrativa dos vencedores?
É aquela que imediatamente as fontes contam. Analisar vozes pouco presentes, até reprimidas ou desqualificadas e desacreditadas, exige um processo crítico muito exigente. Mas, hoje em dia, essas ideias estão a ser radicalmente desconstruídas, desmontadas. É importante que se faça essa desconstrução e se recupere o envolvimento desses grupos na História.
Invisibilidade e esquecimento
São diversas as resistências que podemos encontrar no seu livro. Algumas completamente desconhecidas.
A resistência das pessoas comuns, que tem sido pouco atendida e tratada pela historiografia, observa-se em três níveis. O primeiro tem que ver com as revoltas abertas, coletivas, violentas, em espaço público, que apesar de tudo são as mais conhecidas e sobre as quais existem mais trabalhos. São as revoltas, os tumultos, os levantamentos, os motins. Existe, aliás, um vocabulário muito extenso para as designar. Um outro nível, menos trabalhado porque também mais difícil, são as resistências quotidianas, mais invisíveis, tendencialmente protagonizadas por indivíduos, em espaços privados.
Por isso, aparecem ainda menos nos compêndios?…
No caso das manifestações públicas, muitas vezes há repressão da insubordinação para repor a ordem, pelo que, apesar de tudo, é possível encontrar alguma documentação. Sobre as outras, não. Normalmente, assumem formas mais dissimuladas e podemos falar, por exemplo, da deserção, do contrabando, mas também das fugas dos escravos e, em, alguns casos, da resistência de género ou da persistência em formas culturais e religiosas, como nas populações ameríndias. São formas de resistência que normalmente eram vistas como rebeldia à conversão, à civilização, ou seja, de uma forma negativa e não como uma preservação de características culturais próprias.
E o terceiro nível?
Tem a ver com a participação no sistema político institucional, através por exemplo das confrarias, das petições dirigidas aos monarcas, em que grupos de pessoas procuram levar adiante as suas reivindicações. E eram populações que conheciam esses mecanismos.
Reconhecer essas manifestações de resistência é uma forma de recuperar o lugar desses movimentos e populações no próprio desenvolvimento histórico?
Sim. Essas populações foram invisibilizadas muitas vezes como forma de dominação. Na realidade, existiram e foram agentes ativos e tinham capacidade de intervir e reivindicar melhores condições de vida, mais recursos, ou a preservação das suas culturas, e o combate pelos seus ideais. Nesse sentido, estudar estas resistências trata-se de efetivamente lhes devolver uma importância, uma ‘agência’, como hoje se diz, que lhes foi retirada e negada ao longo de séculos.
Vivemos um tempo de muitos ativismos relacionados com questões de género, racismo, pós-colonialismo, e eles têm, de facto, um longo passado histórico.
Exato. Investigar e estudar estas resistências não é apenas o politicamente correto, como alguns podem pensar. Não se trata disso, mas de diversificar e complexificar os próprios processos históricos, devolvendo-lhes pluralidade. É perceber que sempre houve múltiplos combates e lutas protagonizados por muitas pessoas. Desse ponto de vista, é um enriquecimento. Claro que os historiadores distinguem os ativismos da análise histórica, que tem as suas regras e convenções, de natureza académica e científica, mas trata-se de facto de a enriquecer e ao próprio processo da evolução histórica.
É também um contributo para pensar essas temáticas na ordem do dia?
Claro. A historização destes processos de resistência é muito importante para um melhor conhecimento, um contributo para a própria estruturação dos movimentos que combatem por uma maior inclusão. Porque são lutas que, hoje, também reivindicam uma maior aceitação da diferença, da diversidade de pontos de vista e de abordagens, por um mundo mais inclusivo.
É muito estimulante trabalhar neste campo de investigação e trazer à luz estas histórias de resistência?
É. Fazer a História das populações que têm sido mais silenciadas e ocultadas é apaixonante, ainda mais pela dificuldade e exigência que decorre da pouca documentação existente, o que implica um trabalho mais difícil. Mas entusiasmante também pelo seu potencial e por ser pouco explorado.
Sublinhar a diversidade
Como surgiu a ideia de fazer esta obra, divulgando meia centena de histórias?
Primeiro, com a Casa da América Latina e a Raquel Marinho, apresentei ao Expresso a proposta de publicar no jornal e divulgar ao grande público uma série de histórias pouco conhecidas de resistência e rebeldia, nos impérios ibéricos. E lá saíram, uma por semana, muito bem ilustradas, entre novembro de 2019 e janeiro de 2020. São histórias curtas que agora estão disponíveis online. Entretanto, o Francisco Camacho, editor da Leya, no meio do primeiro confinamento, em maio do ano passado, disse-me que achava muito interessante aquele projeto e se não queria pô-lo em livro. Não o conhecia, trocámos mails, telefonemas, conversamos sobre o figurino que podia ter e avançou. Mas, logo à partida, definiu-se que seriam histórias de resistência apenas no império português. E mais longas.
Quais os objetivos que definiu para a obra?
Foram vários objetivos convergentes. Quis dar conta de todo o espaço do império português, incluindo o território ibérico, o reino.
Porquê?
Não era apenas no espaço imperial que se revoltavam e insubordinavam. Revoltavam-se também em Portugal, em todo o lado. E, por outro lado, achei importante que as histórias se desenvolvessem ao longo de 350 anos, num horizonte cronológico entre 1500 e 1850, para desfazer um pouco a ideia de que havia características de rebeldia e insubmissão em determinadas épocas e regiões. Porque o que me pareceu importante sublinhar foi precisamente a diversidade.
A diversidade é uma palavra-chave para esta galeria de histórias?
Sim. Procurei a diversidade de protagonistas, de género, étnica, de categorias sociais e níveis de riqueza, em diferentes cronologias e espaços.
Houve histórias que a surpreenderam particularmente?
Houve. Por exemplo, a dos protestos das mulheres negras em Lisboa, em 1717, que era completamente desconhecida.
Como foi possível chegar até essa história?
Creio que foi sinalizada por um investigador norte-americano que esteve em Portugal a fazer o seu doutoramento, Cacey B. Farnsworth, que assina a história com Pedro Cardim. E a referência foi encontrada no Arquivo da Biblioteca Municipal do Porto. Tentei incorporar no livro casos mais conhecidos e significativos, como a revolta contra a Companhia das Vinhas do Alto Douro, no Porto, as revoltas fiscais no Algarve, as histórias dos mártires no Japão, da rainha Ginga, em Angola, com episódios desconhecidos como o dos desacatos das freiras no convento de Santa Ana, em Viana do Minho, hoje Viana do Castelo.
Essa é uma das histórias que assina.
E que dá conta de como aquelas monjas tinham capacidade de reivindicação e de enfrentar as autoridades, de uma forma muito inesperada. Seria de esperar que estando num mosteiro estivessem quietinhas e submissas, mas não. Eram truculentas, sem receio de romper com todas as regras, de sair da clausura. Também acho surpreendente a história dos irmãos Barbalho, no Brasil, ou das mulheres angolanas em Benguela no séc. XIX, de Mariana P. Cândido, ou sobre as mouriscas, da minha colega, que entretanto faleceu, Filomena Lopes de Barros.
Também apostou na diversidade de investigadores?
Sim. É uma equipa bastante grande, 35 investigadores. Alguns escreveram mais de uma história. E são realmente de origens institucionais diferentes, de universidades em Portugal, Brasil, Cabo Verde e Estados Unidos. E é importante sublinhar ainda que uns têm carreiras muito consolidadas, já autores de referência, e outros são mais jovens, alguns ainda nem terminaram os doutoramentos. E uma parte significativa deles pertence ao projeto Resistance.
Intercâmbio e conhecimento
Resistance é o projeto europeu que coordena e no qual se inscreve Resistências. Qual o seu âmbito?
É um projeto de mobilidade e faz parte das Marie Curie Actions. É, portanto, composto por instituições europeias e não europeias e o objetivo é que os investigadores circulem entre as universidades. O financiamento de mais de um milhão de euros é para essa circulação, para pagar deslocações, estadias, dos investigadores nessas missões.
Começou em 2018?
Sim, a equipa fez a sua candidatura à Comissão Europeia em 2017, ganhámos o financiamento e começámos em 2018. Mas, infelizmente, por causa da pandemia, tem estado parado. É que o objetivo do projeto é precisamente a mobilidade, a troca de experiências, a partilha de conhecimentos, não só de conteúdos científicos, mas também a nível de formas de investigação e organização universitária ou da realização de colóquios por parte das diferentes universidades. A intenção é que haja um impacto positivo nas carreiras dos investigadores, seja dos mais novos ou dos mais velhos. É essa a ideia base destes intercâmbios.
O foco da investigação do projeto é unicamente o das resistências?
Há quatro grupos de trabalho ligados às diferentes formas de resistências – ativas, quotidianas, políticas e culturais – e um quarto grupo, que tem que ver com a produção de materiais de divulgação, de comunicação com a sociedade, um aspeto que a Comissão Europeia valoriza especialmente. Porque os dinheiros investidos na investigação devem traduzir-se em contributos para a sociedade. Nessa perspetiva, deve haver transferência de conhecimento, no quadro da qual este livro foi feito.
Que outras iniciativas estão previstas?
Está prevista a realização de um colóquio semestral sobre diferentes temas e, entretanto, temos um canal no YouTube com uma série de entrevistas com especialistas em resistência, académicos, diretores de museus e de arquivos, em que falam dos seus trabalhos ou da importância dos seus fundos documentais para o estudo das resistências. Também já fizemos uma série de vídeos para jovens entre os 12 e os 15 anos e queremos dinamizar a nossa relação com as escolas. Vamos lança-los no reinício das atividades e gostaríamos igualmente de fazer exposições digitais. E de preparar e-books sobre resistência e mulheres e resistência religiosa, histórias curtas com ilustrações, vocacionadas para a mesma faixa etária.