O projeto Próxima Cena, do Teatro Nacional D. Maria II, (TNDMII) criado durante a direção artística de Tiago Rodrigues, que pretende levar o teatro ao interior do país e a territórios de baixa densidade, começa com Pranto de Maria Parda, de Gil Vicente, com texto e encenação de Miguel Fragata, interpretação de Cirila Bossuet e música de Capicua e do rapper Chullage, estreia amanhã, 21, na Sala Estúdio do D. Maria II. É uma revisitação contemporânea do texto vicentino, que traz as questões do feminismo e do racismo ao palco, em que o público é convidado a assistir a um “ritual sacrificial, para dizer adeus a um ano mau e libertarmo-nos do peso deste tempo que vivemos”, como adianta ao JL o encenador.
Que interesse pode ter levar hoje à cena um monólogo com 500 anos, mesmo tratando-se de um texto ‘fundador’ da dramaturgia portuguesa, da autoria do ‘pai’ do teatro português? Esta foi a pergunta que desde logo surgiu no espírito de Miguel Fragata (MF), quando o diretor do TNDMII, Tiago Rodrigues, há uns anos, o convidou a encenar Pranto de Maria Parda para inaugurar um novo projeto de descentralização teatral, o Próxima Cena. E a questão era agudamente pertinente, até porque o encenador e ator está longe de ter Gil Vicente entre as suas afinidades teatrais. Confessa ter mesmo alguns “anticorpos”, uma “resistência” que vem da adolescência, quando deu o autor na escola secundária. “Sempre o vi como um autor muito ligado ao seu tempo e dificilmente transportável para o presente, numa lógica de universalidade”, diz ao JL. “E sabia desde o início que precisava quebrar, de alguma maneira, o espartilho que se podia impor ao pegar num texto clássico.”
MF acabou, no entanto, por “aceitar o desafio e catalisar o preconceito em relação ao texto a favor do espetáculo.” Atentou, desde logo, na Lisboa contemporânea, ainda antes da pandemia, “uma cidade já muito alterada, desertificada, com muita gente a ser expulsa do centro, com um turismo verdadeiramente excessivo e destruidor” e encontrou um certo “paralelismo” com a Lisboa “devastada pela seca e pela fome” em que Maria Parda vagueia pelas ruas quase irreconhecíveis. “Pareceu-me que isso era muito pertinente, mas entretanto dá-se a pandemia e tudo ficou ainda mais evidente. Porque, de facto, quando Gil Vicente escreveu este monólogo, havia ainda peste e vivia-se o rescaldo de um ano terrível, 1521”, sublinha MF. “Por outro lado, percebi que Maria Parda era uma espécie de figura sacrificial, que personifica esse ano mau e que tem de morrer para se poder entrar num ano bom e de abundância. E interessou-me muito pensar porque Gil Vicente escolhe personificar o ano mau numa mulher e também porquê que a tradição, ao longo de muitos anos, foi imaginando que Maria Parda seria uma mulher racializada, embora nada o indicasse no texto de Gil Vicente.”
Pranto de Maria Parda tornou-se assim “pretexto” para refletir sobre questões do feminismo, do racismo e “dos processos racistas que houve no país, a escravatura, o colonialismo, na perspetiva de perceber o que resta na nossa cultura: sob a capa do luso-tropicalismo, também se continua a vender a imagem, o mito do bom colonizador que precisa ser muito trabalhado. Este espetáculo lança também pistas para uma reflexão sobre o caminho que fizemos ao longo destes 500 anos e se vamos continuar a sacrificar os mesmos, ou se queremos construir uma cidade verdadeira e profundamente inclusiva.”
Em palco, Cirila Bossuet, “uma atriz muito sólida, com uma grande força anímica, que foi uma escolha com todo o sentido para esta personagem e para pensar as questões que se levantam”, segundo o encenador, vai interpretar integralmente o monólogo, mas haverá um texto paralelo que ilumina a relação com o presente. Foi escrito pelo próprio MF. Nesse sentido, convidou vários consultores para a equipa de criação, especialistas em Gil Vicente como José Camões, e ativistas, como Mamadou Ba. “Foram olhares e perspetivas muito importantes para a escrita e para o pensamento do espetáculo que serve a ideia de uma ponte teatral com 500 anos.”
Até 5 de novembro no TNDMII, a peça será depois apresentada em Tondela, Viana do Castelo, Ponte de Lima, Vinhais, Ourém, Ponta Delgada, nos Açores e Funchal (Madeira).