Nasci no dia 13 de Outubro de 1931 na freguesia de S. Martinho de Recesinhos, no concelho de Penafiel, mas foi no Porto, para onde me levaram com menos de um ano, que criei raízes, flor e fruto, que são a instrução e a família. Mas, à beira dos 76 anos de idade e com mais de meio século de tarimba no jornalismo profissional, olhando através da bruma do tempo para os anos que já se escoaram, constato, com alguma surpresa, que na minha vida não há nem experiências nem acontecimentos dignos de ser memorados.
Com 11 anos, fiz o meu exame da 4.ª classe, na velha escola do Palácio (de Cristal), tendo sido aprovado com distinção. A minha professora, a bondosa D. Belmira, ainda mandou chamar o meu pai e tentou convencê-lo de que seria mau se eu não continuasse a estudar. Mas os tempos iam muito difíceis. A II Grande Guerra já empapava de sangue os campos da Europa. Filho de um modesto casal de trabalhadores, tive de ir logo trabalhar para ajudar a equilibrar o magro orçamento familiar.
O meu primeiro trabalho, conseguido através de um anúncio, foi o de marçano num retroseiro da aristocrática Rua de Santa Catarina. Mas o emprego, onde comecei por ganhar 80$00 por mês, tinha exigências que passavam por uma boa apresentação, de fato e gravata, que se tornaram, a curto prazo, incomportáveis para os parcos rendimentos da família. Tive de dar um novo rumo à vida, que passou por trocar o fato de fazenda fina pelo inestético macacão de ganga azul; e os sapatos impecavelmente engraxados, pelas solipas. De caixeiro passei a operário «não diferenciado», isto é uma espécie de faz-tudo, de pau para toda a colher, primeiro numa fábrica de fósforos e depois na Fábrica de Lanifícios de Lordelo (do Ouro).
A mudança, mas, sobretudo, as suas razões, causaram-me um profundo constrangimento. Porém, nada podia fazer contra as contingências da adversidade. A vida estava cada vez mais difícil. Era o tempo das senhas de racionamento, das longas «bichas» para o pão. Levantava-me de noite e ia para a porta da padaria «guardar a vez», até à chegada da minha mãe que me substituía pelas seis, sete horas da manhã, a tempo de eu me meter, a pé, a caminho, rumo à fábrica, que ficava à distância de uns cinco quilómetros bem puxados.
Em 1951 foi o tempo de pagar o tributo à Pátria, no quartel da minha terra natal, no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves. O regresso à Fábrica dos Panos ocorreu, sensivelmente, ano e meio depois. Nessa altura deu-se um acontecimento que viria a mudar por completo a minha vida. Entre os novos companheiros, encontrei um vizinho que me recrutou para a JOC – Juventude Operária Católica. Passei a assistir a reuniões de grupo, a participar em cursos e seminários, cujos debates me consciencializaram para os problemas sociais da época, o que acabou por contribuir para eu concretizar um desejo antigo: fazer um curso profissional na área do Comércio.
Por aquele tempo, um bom emprego era trabalhar num banco ou numa companhia de seguros. Mas a esses lugares só tinha acesso quem possuísse as habilitações literárias e a formação profissional indispensáveis. Matriculei-me na Escola Comercial de Oliveira Martins, que funcionava na Rua do Sol, num antigo palacete. A fábrica ficava a uns bons oito quilómetros de distância, que eu tinha de fazer a pé duas vezes ao dia. Melhor dizendo, à noite, porque as aulas do Curso Geral de Comércio eram à noite.
Quando, já com o «canudo» na mão, tentava arranjar emprego, numa casual conversa de café, o irmão de um amigo do peito convidou-me para escriturário na secretaria do Hospital de Santo António. Aceitei de imediato. Não era o que queria, mas sempre era melhor do que o meu trabalho na fábrica, onde desempenhei as mais curiosas e bizarras tarefas: tecelão, fiandeiro, operador da tesoura, carpinteiro, trolha, electricista, ajudante de motorista. Onde faltava alguém, ia eu.
No hospital, junto do «banco» da urgência, havia um escriturário. Ofereci-me para essa tarefa, aos domingos. Beneficiava de um suplemento no ordenado e podia gozar as folgas a meio da semana, o que me agradava sobremaneira. Foi aí que conheci os repórteres que iam saber das ocorrências susceptíveis de dar notícia. Dessa ligação com os jornalistas, nomeadamente os do Jornal de Notícias (JN), o que eu lia, nasceram afectos que estiveram na base da minha entrada na sua redacção. Primeiro como colaborador desportivo e pouco depois como profissional. Então, sim, a minha vida mudou por completo. A partir da minha entrada no Jornalismo, senti que abraçava uma profissão que ia exigir de mim um permanente e constante exercício de criatividade e de imaginação, mas também de responsabilidade.
Por essa altura não havia escolas de Jornalismo. Aprendia-se no próprio local de trabalho e o professor era o chefe de redacção, uma figura que desapareceu dos nossos jornais. Tive o privilégio de conhecer no JN mestres que formaram gerações de repórteres e, já no final da carreira, sem qualquer constrangimento, transferiram o testemunho para os que com eles haviam aprendido. De um desses velhos mestres recebi o incentivo que havia de fazer de mim um cronista da cidade.
«Tu só serás um bom repórter da cidade se conheceres bem o Porto e a sua a história» – atiroume ele, uma vez, a propósito de uma pequena e insípida notícia local que eu havia redigido e teria dado uma excelente e comovedora crónica, se soubesse um pormenor histórico ligado ao acontecimento reportado. A partir daí, nunca mais deixei de procurar saber sempre mais sobre a história do Porto, da sua gente, das suas tradições e dos seus costumes. O interesse que o tema despertou em mim foi tal que nos últimos 30 anos consegui reunir uma boa biblioteca de assuntos portucalenses e já vou em mais de dezena e meia de volumes publicados sobre o Porto. Do vasto espólio por mim acumulado e de que fazem parte manuscritos, fotografias, postais antigos, panfletos, cartas, pergaminhos e muitos outros documentos, doei já uma parte significativa ao Departamento Municipal de Arquivos do Porto. Com esse material foi feita uma exposição na Casa do Infante; e realizou-se um colóquio em que participaram professores universitários, historiadores e pesquisadores. O acervo está agora ao serviço dos estudiosos. À Biblioteca Municipal de Penafiel ofereci também várias centenas de livros.
Quinze livros publicados, além de muita colaboração dispersa por revistas e jornais; intervenções nas televisões e rádios; palestras e conferências, sobretudo em escolas, colectividades, e passeios guiados pelos sítios históricos do Porto, são actividades que continuo a desenvolver. Bom também foi ter tido a honra de participar, com o meu amigo Luís Miguel Duarte, prof. de História da Faculdade de Letras do Porto, na elaboração do Dicionário de Personalidades Portuenses, uma importante obra feita no âmbito das actividades culturais da Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, obra de referência, indispensável a quem quiser estudar a cultura portuense do século passado. No âmbito jornalístico colaborei ainda com as revistas Flama e Século Ilustrado; o Expresso e o Jornal Novo; o Jornal do Fundão, o Diário Ilustrado e o Diário Popular. Integrei a equipa do semanário O Jornal, de que fui durante vários anos, delegado no Porto, e depois da Visão, onde orgulhosamente continuo a colaborar. Colaborei também, naturalmente, com este JL e na História.
Tive ainda o grato privilégio de integrar, em vários mandatos, como vice-presidente da direcção, os corpos gerentes do Sindicato dos Jornalistas, em listas independentes de que fizeram parte, como presidentes da assembleia geral e da direcção, os camaradas José Carlos de Vasconcelos e Cáceres Monteiro, sempre lembrado. A nível cultural fui dirigente do Teatro Experimental do Porto, sou sócio fundador do Clube de Jornalistas, presido à assembleia geral da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto e sou secretário da assembleia geral do Centro de Formação de Jornalistas do Porto, além de ser também sócio fundador do Lugar do Desenho – Fundação Júlio Resende. Fui agraciado com as medalhas de Mérito (ouro) pelas Câmaras de Penafiel e do Porto. Mas o meu maior galardão foi e continua a ser o de jornalista.
O jornalismo deu-me tudo. Sempre entendi esta profissão, primeiro como a arte de comunicar, mas também como arma de combate, quando foi preciso combater a prepotência e a arrogância; e como reduto de resistência sempre que se torna necessário resistir às investidas da mediocridade. No jornalismo aprendi a ser solidário e a cultivar os valores da amizade e da camaradagem. E é com orgulho que continuo a ser um jornalista entre jornalistas.