Traduzir é trair? Sim, como qualquer outra ação existencial. Cada movimento parte de uma ideia de movimento que nunca é exatamente igual à ideia. Comunica-se o que se pode, e no que se pode há uma energia diferente da que estava inscrita no desejo: falhamos sempre, em termos ideais, por excesso ou por carência.
Por isso mesmo insistimos: para tentar corrigir a falha entre pensamento e realidade. Cada língua tem a sua música específica, cada autor a sua voz. Às vezes, para traduzir o espírito e a atmosfera de um texto é necessário procurar um outro texto: o dicionário trai, criando a ilusão de que há sinónimos.
Não há sinónimos: por isso é que é tão difícil escrever. Se uma palavra pode ser trocada por outra, não significa nada. Na transição de uma língua para a outra, o perigo está muitas vezes onde menos se espera: nas expressões coloquiais, nos diálogos, nos textos mais próximos do senso-comum.
As interjeições, as expressões idiomáticas e as construções frásicas são diferentes, de língua para língua. A tradução de outras línguas latinas para o português coloca continuamente questões de transparência: é fundamental que a língua de origem desapareça no texto de chegada, para que ele pareça ter sido escrito nessa língua e não seja turvado pela leitura da língua em que foi escrito, sob pena de surgir com uma artificialidade que não tinha.
Este ponto é particularmente sensível tratando-se de Milan Kundera, um escritor que preza ao mais alto grau a clareza e a fluidez da escrita. Alain Finkielkraut perguntou-lhe, numa entrevista em 1979, por que razão alterara o estilo “florido e barroco” que usara em La Plaisanterie (A Brincadeira), tornando-o mais despojado e límpido nos romances seguintes. Kundera sobressaltou-se: “O quê? O meu estilo florido e barroco?”
Foi a correr ler a tradução francesa, que até então não lera, e verificou que, de facto, o romance fora “reescrito”: o céu que o autor descrevia como “azul” tinha-se tornado “pervinca” e sob esse céu “Outubro erguia o seu baluarte faustoso”; as árvores “coloridas” ostentavam na tradução uma “polifonia de tons”. Passou então a ler e a controlar as traduções francesas – e, a partir de 1993, a escrever diretamente em francês.
A minha principal preocupação na tradução de A festa da insignificância foi a de respeitar integralmente a simplicidade da escrita kunderiana. As metáforas poderosas que este escritor cria exigem uma atmosfera de céus claros, jardins luminosos, ruas reais, passos concretos. É na banalidade do mundo quotidiano que a súbita aparição de um anjo, ou das penas das asas de um anjo, surpreende, como acontece neste livro.
“Embelezar” é matar a beleza real, esmagando-a sob o peso do kitsch que tanto tem danificado a perceção humana – estética, ética e politicamente. Kundera escreve a favor do conhecimento e contra a mentira; o despojamento da linguagem é um instrumento essencial desse processo de desocultação: os panejamentos e artifícios de expressão concorrem para uma literatura postiça, censurante, que ofusca o pensamento.
O esforço decorativo é uma máquina de destruição totalitária; a recuperação da capacidade significante da língua começa na capacidade de rejeitar a tralha com que tantos a poluem e encobrem.
O tema dos equívocos linguísticos surge, de resto, em A festa da insignificância, a última e deliciosa obra de Milan Kundera que tive o prazer de traduzir.
Um dos protagonistas é um ator que, à falta de trabalho teatral propriamente dito, se dedica, com um amigo, à organização de jantares e festas em casas particulares. Para não morrer de tédio e se manter em forma, inventa personagens – no caso da festa em torno da qual gira esta história, finge ser paquistanês, e inventa uma língua. Sucede que na festa trabalha também uma empregada doméstica portuguesa, chamada (não sei se por acaso) Mariana, como a famosa (e provavelmente falsa) autora das Cartas Portuguesas.
A portuguesa estabelece um imediato laço de cumplicidade com o falso paquistanês, por o julgar discriminado como ela. O engano de que parte essa atração da portuguesa pelo ator francês é simultaneamente tocante e cómico. Kundera é um mestre na sobreposição destes dois registos.
O humor corrosivo e terno de Milan Kundera continua em excelente forma.
A festa da insignificância constrói-se sobre uma partitura de sorrisos e gargalhadas, celebrando a alegria e a força dessa particular forma de amor que une as pessoas à margem dos fantasmas do sexo ou do pragmatismo dos interesses. Escreve o autor- narrador: “No meu vocabulário de descrente, uma só palavra é sagrada: amizade”. (p.34).
A ternura pelos quatro amigos que protagonizam este breve romance conduz o narrador (descrito pelas personagens como “o nosso Mestre”) a oferecer-lhes as Memórias de Krutchev, onde se conta um hilariante episódio acerca de Estaline e dos seus próximos. Estaline ter-se-ia gabado de ter caçado 24 perdizes de uma só vez; alegava ter encontrado as aves alinhadas numa árvore, matado 12, após o que voltara a casa para buscar mais cartuchos e matar as outras 12, que teriam ficado sossegadas no mesmo ramo, à espera do regresso do caçador.
Os companheiros de Estaline riam-se às escondidas desta impossibilidade; Estaline escuta-os e humilha-os. Uma vez mais, a parábola política serve de pedra de toque à reflexão sobre a insustentável leveza da vida humana: “A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Está connosco sempre e em toda a parte.
Está presente mesmo onde ninguém a quer ver: nos horrores, nas lutas sangrentas, nas piores infelicidades. Exige-se-nos muitas vezes coragem para a reconhecer em condições tão dramáticas e para a chamar pelo seu nome. Mas não se trata apenas de a reconhecer, é preciso amá-la, à insignificância, é preciso aprender a amá-la.” (p. 149).
A melancolia que resulta da consciência da transitoriedade de todas as coisas é, neste livro que assinala o regresso de Kundera à ficção depois de 13 anos de silêncio, mitigada pelo elogio da amizade que atravessa todas as páginas. Numa sociedade de culpabilizadores e desculpadores profissionais, a solidez desse sentimento de pertença e partilha cintila no centro desta preciosa peça literária como o sol que sempre regressa, entre as nuvens ou depois dos temporais.