Em outubro de 2015 vão realizar-se eleições legislativas que permitirão a escolha popular de uma nova maioria na Assembleia da República e de um novo Governo. Legitimamente, multiplicam-se à esquerda iniciativas no sentido de construir pontes que permitam os acordos e as alianças (formais e informais) necessárias para derrotar a coligação neoliberal e conservadora PSD-CDS, maioritária desde 2011. Na construção dessas pontes deve ser dada particular importância à elaboração dos programas que responsabilizem os intervenientes e mostrem ao eleitorado que a Esquerda tem propostas diferentes e capazes de ultrapassar o bloqueio a que as políticas neoliberais conduziram o País (e a Europa).
Assim, neste artigo apresentam-se seis propostas para um debate que permita à Esquerda construir um novo consenso e, sobretudo, governar de modo diferente. Fazemo-lo com a consciência das responsabilidades que tivemos na construção desse consenso, que permitiu a Portugal sair de uma situação de analfabetismo generalizado e de baixíssimos índices de escolarização, sem paralelo na Europa onde hoje nos integramos de pleno direito.
As seis propostas que agora apresentamos partem todas de um mesmo denominador: o que caracteriza uma política de esquerda é a forma como aborda a questão da justiça social, como se empenha no combate às desigualdades, reconhecendo as diferenças. E, no campo da Educação (e Ciência), a justiça social assume a forma de justiça cognitiva. Como afirma Thomas Piketty (O Capital no século XXI, 2014, p. 43), “a principal força motriz que verdadeiramente tende para a igualdade das condições é a difusão do conhecimento e da qualificação”.
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A primeira proposta prende-se com a escolha de prioridades. Uma política de educação de esquerda tem duas prioridades inequívocas: (i) a educação de infância, do nascimento à primeira fase de escolarização (0-8 anos de idade), pois é neste período que se sedimentam as maiores desigualdades; (ii) a educação de adultos, incluindo a de jovens adultos precocemente expulsos do sistema escolar sem qualquer qualificação.
A segunda proposta liga-se à alocação de recursos e ao conceito de investimento estratégico. Por muito simpático que seja dizer que se tem de fazer um melhor uso dos recursos disponíveis, face a uma situação em que as políticas neoliberais de ajustamento reduziram as despesas com a Educação a valores próximos dos 4% (um dos valores mais baixos dos países da UE e da OCDE), uma política de esquerda tem de defender um progressivo reforço dos investimentos, de forma a atingir em 2020 valores próximos dos 7% do PIB em Educação e dos 2% em Ciência. As instituições vivem hoje abaixo de limites mínimos de financiamento, em particular na educação superior, necessitando urgentemente de renovar o seu corpo docente e de investigação.
A terceira proposta implica profundas mudanças na administração e gestão da educação, incluindo das universidades e institutos politécnicos públicos. Às políticas iniciadas no Ministério de Maria de Lurdes Rodrigues, e prosseguidas e ampliadas pelo Ministério Crato, tem de se pôr um travão e pensar com outras lógicas e pressupostos: (i) assumir uma política de gestão das escolas que privilegie a proximidade, revendo a organização em mega-agrupamentos e diminuindo a carga burocrática que, em nome da accountability (prestação de contas), afogaram literalmente o trabalho educativo de professores e gestores; (ii) defender uma gestão democrática e participativa, que fomente o aparecimento de lideranças mobilizadoras de processos de mudança; (iii) reverter o processo de municipalização do ensino iniciado pelo Ministério Crato, permitindo uma real abertura da escola à comunidade local e aos movimentos sociais e de cultura; (iv) equacionar outros modos de organização das universidades e dos institutos politécnicos que não aqueles que o new public management tornou senso comum e modelo único.
A quarta proposta implica uma revisão das medidas tomadas pelo Ministério de Crato relativamente aos planos de estudo, aos programas e à avaliação escolar. A última década e meia foi marcada, em Portugal, por uma tosca transposição do debate e das propostas dos think tanks conservadores norte-americanos, algumas concretizadas em políticas nos Governos Bush pai e Bush filho, sobre o que deve ser o conhecimento oficial da escola pública. Essas políticas correspondem ao que em inglês se designa por back to basics, e que nada mais é do que uma versão atualizada do “ler, escrever e contar”, máxima implementada por Salazar e Carneiro Pacheco na década de 1930. Uma política de educação de esquerda tem de assumir que a escola é um espaço público privilegiado de formação cidadã (e não apenas, nem fundamentalmente, de treino para a “empregabilidade” e o “empreendedorismo”, esses conceitos tóxicos responsáveis pelo empobrecimento cultural da formação escolar e que têm sido muitas vezes adotados acriticamente por alguma esquerda). A escola pública tem de ser exigente culturalmente e propiciar o acesso de todos à beleza do conhecimento e à fruição dos bens culturais; não pode ser um local onde os filhos dos pobres aprendem apenas a “ler, escrever e contar” e a obter uma formação profissional reduzida. Uma política de esquerda deve rever os processos de avaliação implementados pelo Ministério Crato, acabando com os exames precoces que envergonham Portugal nas comparações internacionais.
A quinta proposta reporta-se à complexa questão dos professores, educadores e outros profissionais da educação e formação. Os últimos tempos têm sido de risco para estes profissionais – desde o Ministério de Maria de Lurdes Rodrigues mas com particular ênfase durante o Ministério de Crato, causticados por políticas que têm agravado a sua situação profissional (reduções de salários, cortes nas aposentações, congelamento de carreiras) e reduzido o seu poder (social e de educadores), matando todo o empenhamento e dinâmicas autónomas que ainda iam subsistindo nas escolas. Uma política de esquerda deve contemplar um pacto com estes profissionais, fundamentais para qualquer mudança duradoura na educação. Esse pacto deve contemplar pelo menos três domínios: (i) as questões de natureza laboral (descongelamento de carreiras, estabilidade profissional, concursos, salários); (ii) a formação e as condições de acesso à profissão, envolvendo novas formas de conceber a formação inicial e contínua; e (iii) a participação e envolvimento no combate ao insucesso escolar e à elevação da qualidade das aprendizagens, garantindo o propósito de tornar as escolas espaços públicos hospitaleiros, onde o combate às desigualdades constitua o centro dos seus projetos educativos.
A sexta proposta refere-se à educação superior e à necessidade de se repensar o modelo dual prevalecente desde os anos 1970. Hoje, cada vez faz menos sentido o entendimento de que a diversidade de oferta educativa no ensino superior deve assentar numa divisão institucional entre sistema universitário e sistema de ensino politécnico. Uma política de esquerda não deve temer quebrar esse consenso de “bloco central”, permitindo que as universidades possam oferecer formações curtas e muito direcionadas para a inserção profissional dos jovens e que as escolas politécnicas possam desenvolver investigação e desenvolvimento e atribuir todos os graus que as qualificações do seu corpo docente permitam. A quebra desse consenso facilitará a reestruturação e racionalização da rede de ensino superior, por meio de fusões e de acordos de cooperação e desenvolvimento, evitando sempre a desertificação do interior. Neste campo, impõe-se igualmente rever o modelo de regulação implementado a partir da criação da Agência de Acreditação e Avaliação do Ensino Superior (A3ES), aproveitando o que de positivo representou, mas evitando que se transforme numa agência sem controlo democrático que, em nome de uma pretensa racionalidade técnica, se tornam os efetivos órgãos de decisão política. O pensamento neoliberal valoriza muito este tipo de agências pretensamente independentes. Uma outra política implica também encontrar novos modos de regulação, que aliem rigor a participação e responsabilização democráticas.
Este é o nosso contributo para um debate que deve mobilizar todos os que têm o seu “coração” à Esquerda, ou seja, que entendem que a luta contra as desigualdades e por uma maior justiça social constituem a prioridade das prioridades da ação política. Assim, como a Direita consegue unir as diversas direitas na luta pelo poder, também as esquerdas, na sua diversidade e origens, têm o dever de procurar construir uma alternativa de Esquerda ao consenso neoliberal e conservador, nesta sua versão alemã de ordoliberalismo, contribuindo assim para dar esperança numa vida melhor, e afirmar a dignidade dos povos que constituem esta nossa Europa, diversa e plural.
*António Teodoro é doutorado em Ciências da Educação pela Univ. Nova de Lisboa, prof. catedrático da Univ. Lusófona, também de Lisboa, e prof. visitante da UNINOVE de São Paulo. Autor de numerosas obras, foi fundador do movimento sindical dos professores e primeiro secretário-geral (1983-1994) da Fenprof, bem como coordenador da Rede Ibero-Americana de investigação de Políticas da Educação