Passou despercebido, mas o livro que o presidente da Câmara do Comércio do Brasil ofereceu a Aníbal Cavaco Silva, em março do ano passado, durante a visita oficial a Portugal da Chefe de Estado brasileira, Dilma Rousseff, tinha a marca de um grupo editorial português agora a atuar no outro lado do Atlântico, a Babel. Provavelmente, foi uma boa forma de abrir o apetite a futuros negócios entre os dois países, na medida em que não só se afigurava como mais um exemplo do intercâmbio económico em curso, como a obra tinha o sugestivo título de Poesia é para comer. No interior, a seleção de poemas de Ana Vidal era acompanhada por receitas de alguns dos mais conceituados chefs portugueses e brasileiros, em autênticas iguarias para o corpo e para o espírito. Não se sabe se este livro deixou o Presidente da República com água na boca, mas para Nuno Barros, administrador do Grupo Babel, criado por Paulo Teixeira Pinto, foi um “sinal” do “prestígio” que a aposta no Brasil já conquistou. “Temos sido muito bem recebidos, quer pela crítica, quer pelos leitores, quer ainda pelos pares”, garante ao JL.
Para quem acompanha o mundo dos livros, este é apenas mais um episódio da recente história editorial portuguesa no Brasil, a que poderíamos acrescentar outros “sucessos”. Como este: alguns dos livros mais vendidos no Brasil, em 2011, têm a chancela da Leya Brasil, a filial do grupo criado por Miguel Paes do Amaral. Um resultado que ficou a dever-se, em parte, a um best-seller mundial, a série Crónicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin (cujo primeiro volume foi adaptado a série televisiva). No entanto, ao JL, Pascoal Soto, editor da Leya Brasil, sublinha a constância das boas vendas. “Antes de A Guerra dos Tronos outros 15 títulos da Leya figuraram entre os mais vendidos”. E exemplifica: “Histórias de Canções – Chico Buarque, de Wagner Homem, Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch, ou Brasil: Uma História, de Eduardo Bueno”.
Com estas notícias, não surpreende que outras editoras comecem a seguir os passos da Babel e da Leya, como vai fazer a Tinta-da-China. O primeiro livro da empresa brasileira de Bárbara Bulhosa e Inês Hugon é uma antologia de crónicas de Ricardo Araújo Pereira e chega às livrarias em março, aproveitando a participação do humorista no Festival Risadaria. Segue-se, em abril, O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, e, em agosto, E a Noite Roda, o primeiro romance de Alexandra Lucas Coelho (com edição portuguesa em março).
Um governo que compra
O tempo dirá se editar no Brasil passará a ser uma tendência das editoras portuguesas que queiram fugir às dificuldades que se vão sentir em Portugal em 2012 e cujo primeiro sintoma é a forte quebra nas vendas. Certo é que a este empreendedorismo não é alheio o bom momento económico que o outro lado do Atlântico atravessa. “O Brasil está a fervilhar”, afirma, ao JL, Maria João Costa, que está de malas feitas para o seu maior “desafio” profissional: vai trabalhar com Pascoal Soto, na Leya Brasil. “Mundial de Futebol, em 2014, Jogos Olímpicos, em 2016, congressos, encontros e reuniões, está tudo a acontecer lá”, garante. Com o mesmo entusiasmo, Bárbara Bulhosa, da Tinta-da-China, diz-nos: “É uma economia em constante crescimento, com novos públicos para o livro”. E acrescenta: “Ao contrário de Portugal, o Brasil está a investir na Educação e na Cultura”.
Jornalista cultural e escritor, Rodrigo Lacerda tem acompanhado com atenção a entrada de várias editoras estrangeiras no seu país. E sabe que o interesse não é só português. Como a Babel, a Leya e a Tinta-da-China, grandes grupos e editoras espanholas, alemãs, francesas e inglesas têm o Brasil debaixo de olho. Recentemente, a Penguin comprou 45 % da Companhia das Letras, que edita alguns dos mais conceituados escritores brasileiros, como Chico Buarque, Jorge Amado ou Lygia Fagundes Telles. A Amazon, por seu turno, abriu uma loja on-line direcionada ao público brasileiro. Para este interesse generalizado, o autor de Outra Vida, que acaba de ser publicado em Portugal pela Quetzal, avança duas explicações. Por um lado, as margens de crescimento do mercado brasileiro são enormes, tendo em conta o trabalho que está a ser desenvolvido nas áreas da Educação e dos hábitos de leitura: “Se tudo correr bem, o Brasil vai ter uma gigantesca classe média. E muitos milhões quererão ler e comprar livros”, afirma Rodrigo Lacerda. Por outro, “o Brasil é um dos maiores compradores de livros do mundo. Os vários planos de leitura municipais, estaduais e federais são cruciais para muitas editoras e implicam centenas de obras”, lembra.
Este é um dado fundamental na equação que as editoras portuguesas têm de resolver, já que o circuito livreiro ainda é reduzido e localizado sobretudo nos grandes centros urbanos. A distribuição é, de resto, um dos principais desafios que Nuno Barros e a Babel enfrentam, depois de terem superado o longo processo burocrático de abertura da empresa. “O Brasil não é um país, são vários países”, afirma o administrador. Nesse sentido, é preciso fazer “opções” e planear a entrada em cada estado federal. Além disso, com um território tão grande, “não é possível à Babel ter uma distribuição própria, como faz em Portugal”. Com tantas incógnitas, uma das soluções será, adianta Nuno Barros, “optar pelos circuitos não tradicionais (como os supermercados), que ainda têm uma grande margem de progressão”.
Para lá da Economia
Nem tudo são números neste ‘descobrimento’ editorial do Brasil, que teve como um dos pioneiros Fernando Guedes, da editorial Verbo, que no país abriu em tempos uma sucursal. Publicar e promover autores no espaço global da língua portuguesa é, segundo a sua apresentação institucional, a vocação da Leya, pelo que apostar no Brasil foi pensado desde o início. “Está no nosso ADN”, afirma, ao JL, José Menezes, assessor de imprensa da Leya. “Só assim poderemos ser um grupo editorial de referência no espaço da Lusofonia”.
No mesmo sentido, Paulo Teixeira Pinto apresentou a Babel, durante um debate sobre o tema O Livro, realizado no passado dia 12, na SEDES, não como “uma editora portuguesa, mas da língua portuguesa”. Ideia que Nuno Barros reforça ao JL: “O nosso objetivo é levar a literatura em português o mais longe possível”. No caso da Leya Brasil, a atividade editorial não se restringe à literatura, sendo esta, inclusivamente, minoritária. A educação e o e-learning são as áreas com maior dimensão, representando cerca de dois terços das receitas, percentagem que tenderá a aumentar.
É esta dimensão cultural que mais entusiasma Rodrigo Lacerda. Reconhecendo que num primeiro momento a recetividade das editoras estrangeiras foi muito boa, sempre vai alertando para o facto de a capacidade de dinamizar a cena literária brasileira depender das opções de cada um. Um dos problemas que identificou foi “o desejo das editoras competirem nos dois lados do negócio, o comercial e o cultural”, o que em alguns casos levou a uma descaracterização das respetivas linhas editoriais. Na sua opinião, “criar diferentes chancelas, com identidades fortes, pode melhorar a relação com o leitor”. Uma tese que tem sido seguida pelas editoras portuguesas. Sem capacidade para comprar editoras brasileiras, como fizeram em Portugal, a Babel e a Leya fundaram projetos de raiz, com filosofias próprias.
“Somos uma editora orientada para o mercado, que é plural, multifacetado, e atuamos nas mais diversas linhas editoriais”, descreve Pascoal Soto o seu trabalho à frente da Leya Brasil. E enfatiza: “Todos os nossos autores são importantes. Uma editora não se faz apenas com best-sellers”. Assim, os livros publicados são divididos por várias marcas: a Leya, para ficção e não ficção; Lua de Papel, para os segmentos de desenvolvimento pessoal, espiritualidade e cultura pop; Barba Negra, para leitores ousados de BD, humor, terror e cinema; e Casa da Palavra, para a história e cultura brasileiras.
Concebendo o mercado como uma pirâmide, Nuno Barros assegura-nos que a Babel só vai “atuar na base e no topo”. “Só aí conseguiremos fazer a diferença”, diz. Isso traduz-se em livros infantis, em baixo, e a ficção e o ensaio, em cima. Neste último campo, Nuno Barros destaca a coleção de biografias, publicada em Portugal pela Verbo e em França pela Fayard.
No Brasil, a Tinta-da-China não mudará muito a fórmula que tão bons resultados tem dado em Portugal. “Sem pressas”, vão começar por lançar poucos autores e valorizar o “livro enquanto objeto”, com o design a contribuir para a personalidade da editora. De resto, foi a vontade de poder controlar “todo o processo editorial” que levou Bárbara Bulhosa a criar uma editora de raiz, em vez de estabelecer uma parceria ou apenas vender os direitos dos seus livros. “Assim, continuaremos a ser independentes e a defender os nossos autores”, afirma.
Ler na mesma língua
Poderá esta “aventura editorial”, como lhe chama Bárbara Bulhosa, promover um maior intercâmbio cultural entre Portugal e Brasil? Também aqui, o tempo o dirá. A conjuntura, no entanto, é favorável. Por decisão da X Cimeira entre os dois países, 2012 é o Ano de Portugal no Brasil e o Ano do Brasil em Portugal. Segundo a resolução do Conselho de Ministros n.º 7/2012, publicada em Diário da República no passado dia 13 de janeiro, esta iniciativa será uma “oportunidade para atualizar as imagens recíprocas, promover as culturas e as economias de ambos os países e estreitar os vínculos entre as sociedades civis”. Neste contexto, a literatura, as artes e a criatividade são áreas devidamente contempladas. Mais pormenores sobre esta iniciativa serão divulgados pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Divulgar escritores brasileiros em Portugal não é, contudo, tarefa fácil. Quem o diz é João Rodrigues, da Sextante, do grupo Porto Editora, que não tem no seu horizonte abrir uma editora no Brasil. Com muitos anos no mundo do livro, o editor já viu muitos bons livros ficarem sem leitores suficientes para compensar o investimento. Do seu currículo, recorda, a título de exemplo, Tabajara Ruas e Luiz Antonio de Assis Brasil, “dois extraordinários autores, com uma estupenda capacidade de contar uma história”, que publicou quando esteve na Ambar mas que não funcionaram. O cenário muda, esclarece, quando se trata de um “escritor com nome, que já é uma marca”. É o caso de Chico Buarque ou de Jô Soares e, antes, Jorge Amado e Érico Verríssimo, que em Portugal tiveram um público vastíssimo, “não só pela sua qualidade literária, mas também pelas suas histórias de resistência”. Com novos autores, reconhece João Rodrigues, “os resultados são mínimos”. Apesar da proximidade histórica e cultural, um livro brasileiro não consegue competir com as campanhas de marketing que acompanham os grandes best-sellers internacionais, frisa o editor da Sextante, que faz questão de sublinhar que o mesmo se passa em Espanha, França, Inglaterra e em outros países. E o que acontece com a literatura brasileira, acontece também com espanhola, anglo-saxónica, francófona ou nórdica.
João Rodrigues está no entanto empenhado em combater esta tendência, sobretudo quando estão em causa autores em que “acredita” e de “muita qualidade”. Ainda este mês sai, na Sextante, o terceiro romance de Rubem Fonseca, A Grande Arte, para muitos a sua obra-prima. E para não repetir resultados anteriores, reforçou as estratégias de marketing e o trabalho de divulgação, o que já deu os seus resultados. Dos dois livros do Prémio Camões 2003 que lançou o ano passado, O Seminarista já vai na segunda edição e Bufo & Spallanzani tem vendido bem.
Será a língua um problema? João Rodrigues acusa a brincadeira, mas acha que não: “Os livros que vêm do Brasil leem-se facilmente e tanto os brasileiros percebem bem a nossa literatura, como nós a deles”. Rodrigo Lacerda é da mesma opinião, ele que tem em Eça de Queirós um dos seus autores de eleição. “Li tudo dele, a ficção e as páginas do jornal e do diário”, confessa. “A sua capacidade de análise e a forma como conjuga humor e emoção foram fundamentais para a minha formação”. No Brasil, as maiores dificuldades que os autores portugueses encontram é junto do “grande público”. “Nesse segmento, há de facto alguma resistência a uma linguagem aqui considerada mais clássica e castiça, que a um leitor médio brasileiro talvez soe um pouco antiquada. São diferenças que nenhum Acordo Ortográfico pode resolver”.
Mas talvez haja uma explicação para esse sentimento. “Ao contrário de muitos outros países, sobretudo europeus, o Brasil tem uma relação muito difícil com a sua tradição. Há toda uma estética e moralidade que o modernismo brasileiro e as vanguardas ofuscaram e que nos afastam de Portugal”. São precisamente estes autores, entre muitos outros, que Rodrigo Lacerda espera que as editoras portuguesas possam recuperar, de forma a fortalecer a ponte cultural entre os dois países.
“Temos completa autonomia: não há qualquer compromisso da Leya Portugal publicar os nossos livros e vice-versa,”, avança Pascoal Soto ao JL. Admite, porém, que é mais uma porta que se abre. “A literatura portuguesa goza de muito prestígio no Brasil e são várias as editoras que publicam escritores portugueses”, garante. “A Leya Brasil é mais uma. E quando decidimos publicar um escritor português é porque julgamos que há mercado para ele no Brasil”.
Semelhantes linhas seguirá Barbará Bulhosa que, para o sucesso dessa missão, não irá adaptar os seus romances ao português do Brasil. Para Maria João Costa, que agora está mergulhada na história e cultura brasileiras, para preparar a sua entrada em funções na Leya Brasil, “insistir no longo prazo” pode ser uma saída. “Na área da literatura, às vezes é difícil inventar muito mais do que já foi feito. É preciso acreditar num autor, montar uma boa estratégia de marketing e esperar que o leitor reconheça a qualidade do livro e do seu autor”. Ou seja, por mar ou por avião, editorial ou literariamente, atravessar o atlântico leva sempre o seu tempo.